quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Obrigado, Júlio César


Nunca fui um fã incondicional de Júlio César. Mesmo nos melhores anos da sua carreira, ao serviço do Inter de Mancini e de Mourinho, nunca o coloquei num patamar de qualidade onde se encontravam outros grandes nomes das balizas do futebol internacional. Ainda assim, e sobretudo após esta passagem de três temporadas pelo Sport Lisboa e Benfica, ganhei por Júlio César uma admiração e um carinho muito especiais. 

A carreia de Júlio César foi sempre marcada pela palavra "superação". E foi precisamente à medida que fui conhecendo a sua carreia que a minha admiração pelo goleiro brasileiro foi crescendo. Depois do início da carreira no futebol brasileiro, como tantos outros, no clube do coração, o Flamengo, no qual experienciou a titularidade aos 17 anos, alguns títulos e a luta para evitar a despromoção do Brasileirão, chegou à Europa em 2004 pela mão de Roberto Mancini. No entanto, mal chegou, foi emprestado ao Chievo Verona, clube no qual, durante os seis meses de empréstimo, não teve sequer a hipótese de se estrear. Regressaria ao Inter de Milão no início da época 2005/2006 para ser o quarto guarda-redes da turma interista. Até 7 de Julho de 2005, o dia que mudou a carreira de Júlio César.

Londres, 7 de Julho de 2005. Um atentado terrorista em 3 pontos da rede de Metro e um autocarro provoca 56 mortos e mais de 700 feridos. O Inter de Milão faria parte da pré-temporada em Londres e  perante as recusas de Francesco Toldo, Fabián Carini e Paolo Orlandoni em viajar, Júlio César aceita e conquista a titularidade da baliza dos nerazzurri para a temporada 2005/2006. Nas sete temporadas ao serviço do Inter conquista 14 títulos com destaque natural para a vitória na Liga dos Campeões em 2010 (com Mourinho ao leme), ano em que é eleito melhor guarda-redes a actuar no velho continente. E é no topo da carreira que surge o abismo.

Quartos-de-final do Campeonato do Mundo, África do Sul 2010. O Brasil adianta-se no marcador e está a 45 minutos de alcançar as meias-finais. Na segunda parte, após cruzamento da direita, uma saída em falso potenciada por falha de comunicação com Felipe Melo permite o empate dos holandeses, que minutos mais tarde fariam a reviravolta no marcador e deitavam por terra as esperanças dos canarinhos. Júlio César não se esconde. Dá a cara e assume responsabilidades na flash interview perante 200 milhões de brasileiros. Mas vai-se abaixo. Desanima. Desmotiva. Afrouxa. E o rendimento desportivo cai a pique no Inter de Milão. Dois anos depois da conquista da Liga dos Campeões, sai de Itália e procura novo rumo na carreira com os olhos postos no regresso à selecção brasileira, indo para o pequeno Queens Park Rangers, da Premier League.

Apesar de boas exibições individuais, que lhe valeram o regresso à selecção brasileira, o QPR acabou relegado ao Championship. E nem tudo foi um mar de rosas neste ínterim. Em três anos passou de melhor guarda-redes do mundo a desempregado. Teve de comprar o próprio equipamento e foi treinar sozinho para parques com o filho. Mas superou as adversidades e regressou pela porta grande ao escrete, defendendo um penalty de Diego Forlan nas meias-finais da Taça das Confederações 2013, conduzindo o Brasil à conquista do troféu e levando para casa o prémio de melhor guarda-redes da competição.

E é no ocaso de uma carreira brilhante que o destino atraiçoa Júlio César. O Brasil, por muitos designado como um dos principais favoritos à conquista do Mundial 2014, após ultrapassar o Chile  no desempate por grandes penalidades, no qual Júlio César defende três cobranças dos chilenos, é cilindrado pela Alemanha (7-1). No final dessa competição, Júlio César pondera anunciar o adeus aos relvados. Mas contrariado pela família, mantém as luvas calçadas e viaja para Lisboa para encontrar uma nova família futebolística.

Três épocas completas de Benfica. Outros tantos campeonatos, uma Taça de Portugal, duas Taças da Liga e duas Supertaças. No Benfica encontrou, além dos títulos, um clube que o acarinhou de forma muito particular e igualmente merecida. Deu estabilidade à baliza encarnada, que se encontrava órfã depois da saída de Oblak. E as suas defesas valeram títulos. Foi absolutamente decisivo com enormes intervenções na época do bicampeonato e igualmente muito importante, apesar de ver o seu papel subvalorizado, na época do tricampeonato, na qual defendeu a baliza encarnada durante mais de 2/3 da temporada.

De Júlio César fica além da qualidade, da simpatia e do carisma, a personalidade e o exemplo de liderança. Mesmo nos piores momentos pessoais ou colectivos, nomeadamente ao serviço da selecção brasileira, Júlio César não se escondeu e deu sempre a cara nas entrevistas após os jogos, assumindo responsabilidades. Não me esqueço também das várias vezes em que na rodinha de jogadores que se forma imediatamente antes dos jogos começarem, Júlio César usou da palavra para incentivar os colegas. Recordarei a forma correcta e cordata como aceitou a passagem de testemunho, de titular para suplente, sem levantar ondas e mantendo o profissionalismo. E a forma honesta como preferiu, como grande Homem que seguramente é, sair do Benfica pela porta da frente, pela porta grande. Obrigado por tudo, Júlio César.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O HAT-TRICK DE RUI ÁGUAS – DOIS GLORIOSOS GOLOS E UM EXTRAORDINÁRIO QUASE-GOLO 



1988, segunda parte das meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Eu, o meu Pai e mais 129.998 benfiquistas na Luz sob o mote do Presidente João Santos - "Um benfiquista, uma bandeira" - cantamos "Benfica, Benfica, Benfica" a levar o Glorioso até à final de Estugarda. Mats Magnusson de costas faz um passe a isolar Rui Águas. O romeno do Steaua ainda consegue recuperar a bola, mas logo o filho do Bicampeão Europeu a rouba e segue rápido para a baliza, meio descaído na esquerda. Entra na área.

(O meu Pai mete a mão na minha perna e flecte os joelhos à espera do golo, eu meto a mão na perna do meu Pai e flicto os joelhos a desejar o golo, as pernas e as mãos cruzam-se e os joelhos flectem-se a ordenar o golo, os filhos metem todos as mãos nas pernas dos pais, os pais metem todos as mãos nas pernas dos filhos, todos os joelhos do mundo flectidos com saudades do golo. Tudo em tensão: mãos, pernas, joelhos. 130.000 pais e filhos, amigos, padrinhos, vizinhos e estranhos agarram-se às pernas uns dos outros numa corrente humana de pernas, joelhos e mãos a fazer do Estádio da Luz um absurdo fenómeno de flexões colectivas e o coração aos saltos, em místicas diástoles em gloriosas sístoles, pulsando desejos infantis: "faz golo, faz golo, faz golo, faz golo, faz golo, faz golo")

Rui Águas dá um toque ligeiro para a frente (amacia-a, prepara-a, acalma-a). Quando lhe aparece um adversário ao lado, mete-lhe a bola por entre as pernas, e, já sem espaço, salta - salta como um cavalinho, como se fosse o último salto de sempre - para poder rematar. Um lance à Jonas (ou é Jonas que tem coisas de Rui Águas?). Remata e a bola é defendida no chão por Liliac. Uma jogada transcendental que começou com Silvino e o seu equipamento verde a colocarem a bola em Álvaro que levantou na esquerda para a cabeça de Pacheco que, junto à linha, cabeceou para Magnusson que, de costas, meteu em Rui Águas e o resto é História. Um extraordinário quase-golo.

(Por todas as casas e cafés do país, por todo o mundo, os joelhos flectidos, as mãos nas pernas, a saudade do golo esvaem-se em quase-golo e os corações benfiquistas voltam à nervoseira habitual. Tudo sempre à espera de mais um golo. Do terceiro golo em viagem para Estugarda.)

A bola distancia-se da baliza adversária, segue para os romenos. Já fora do plano das câmaras, Rui Águas, longe da bola e no meio dos centrais romenos, frustrado pelo extraordinário quase-golo, automotiva-se olhando o Estádio da Luz - "Um Benfiquista, uma bandeira" - e, em pleno relvado, começa a sonhar com os dois golos que já tinha marcado na primeira parte.

(GOLO GLORIOSO NÚMERO 1 - Aos 25 minutos, canto para o Benfica. Pacheco trata da ocorrência. Como Águia Vitória, a bola voa por cima do relvado. Entra na área. Mozer, armado em Mozart, já tem tudo na cabeça e desvia para o segundo poste. A bola parece meio perdida, vai a sair do perigo. Mas não, há Rui Águas e a sua disponibilidade mítica para o salto-peixinho. O goleador anteviu, reflectiu, dispôs-se ao chão. Cabeceou não só para o lado contrário do guarda-redes como ainda lhe deu efeito para cima - poucos jogadores no mundo seriam capazes desta loucura: talento, técnica e uns pozinhos de despero. A redonda entra no topo da baliza, abana as redes e depois é o caos, o Estádio entrou em erupção e a lava caiu quente a queimar o relvado. Lembro -me de ser atirado com os meus 6 anos para 7 ou 8 filas abaixo. "Foi você que perdeu o seu filho num golo do Benfica?"

GLORIOSO GOLO NÚMERO 2 - Aos 33 minutos, Mozer (outra vez doidão por aquilo que hoje se definiria como o "movimento ofensivo"), segue meio-campo romeno adentro, faz passe para Rui Águas, que sofre falta. Livre perigoso, sobretudo se na nossa equipa tivermos um Diamante chamado Diamantino. O capitão não marca o livre de forma normal, ele faz diferente. Ele faz diferente: amanteiga a bola, marca um livre como se passasse manteiga por pão quente. Ela segue tão amanteigada por cima dos romenos só para encontrar a cabeça de Rui Águas que, em jeito perfeito como lindíssimo cabeçeador que sempre foi (um dos melhores da História do Futebol), a desvia, a encaminha, a ensina, a dirige para dentro das redes. Rui Águas é abraçado efusivamente, não notando que, nesta altura, na maluqueira dos 130.000, eu já tinha sido atirado para dentro da toalha branca do Eusébio. "Foi Você que encontrou o seu filho num golo do Benfica dentro da toalha do Eusébio?")

Rui Águas pensa em José Águas, o Pai. O bicampeão europeu homenageado pelo filho com a melhor forma que um filho pode homenagear o Pai: repetindo-lhe os feitos. 20 anos depois, o Benfica estava outra vez numa final da Taça dos Clubes Campeões Europeus.



quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Otília, a Rainha das bifanas



Na noite anterior ao dia que será o dia de jogo, Otília deitada na cama faz contas de somar. Febras, entremeadas, hambúrgueres, salsichas, chouriças, pão normal, papo-seco, pão de cachorro, ketchup, mostarda, barris de cerveja, garrafas de vinho, uma de moscatel, outra de uísque barato, azeite, óleo (muito), sal, pimenta, especiarias (as que der para comprar), guardanapos, batatas de pacote, batatas-palha, cenouras, pickles, lavar copos, comprar pratos de plástico, confirmar se a televisão está boa, ligar para os senhores da MEO, ir às botijas de gás, limpar a rulote, escrever na lousa e no papel as promoções («à entermiada, hamburgue, hot-dog, chourisso e febra»), lembrar o Manel de encher os pneus da viatura, dizer-lhe com carinho: «põe água no carro», ao filho pedir que leve os aventais pretos, à nora não dizer nada, que é uma cabeça tonta.

Passa a noite nisto: relembra tudo uma vez, depois volta a percorrer a listagem das coisas a fazer, perde-se a meio, começa de novo, «febras, entremeadas, hambúrgueres...». Com os anos de ofício, as coisas a fazer são lembradas com método, raramente mudam de posição, tudo tem a ciência que Otília criou na sua cabeça e no seu agir. Começa pelas carnes, a meio põe a necessária padaria, depois vêm os molhos, logo a seguir os bebes, as gorduras, os condimentos, acompanhamentos, a higiene, os utensílios, a necessária burocracia, as limpezas, os escritos e, por fim, os avisos à navegação da tripulação da rulote para que se não percam num detalhe, morram num pormenor, destruam a noite de negócio por um esquecimento sem sentido.

Otília tem dos dias a ideia de um trilho de comboio - pouco interessa o chegar, mais vale acautelar o ir. Limar os parafusos, arranjar as estacas de madeira, limpar as plantas que nascem no meio, fazer brilhar o metal. O comboio - esse comboio que anda em movimento há exactamente 64 anos - deve passar sem um sobressalto, galgar em direcção ao lugar para onde vai sem nenhum contratempo, dentro do tempo previsto, indo indo indo, só vapor, velocidade e horas marcadas no relógio grande dos ponteiros pretos das estações. Chega-se ao destino não por acaso divino mas pelas mãos de homens que acautelam o seu chegar. Os silvos da noite, os raios do dia, o fumo, a humidade, as temperaturas, os frios e os calores, a força do tempo - tudo mecânicos elementos que conspiram contra a desenvoltura do comboio em movimento. Basta que uma roldana, uma porca, uma lasca, um esquecimento aconteçam e toda a engrenagem afunda num tropeço de forma, abrandando o passo ao comboio, sulcando-lhe as vontades, quebrando-lhe o eixo, desencarrilhando-lhe as promessas.

Houve um dia, já longínquo na memória, dia de sol glorioso de um princípio de tarde junto ao Estádio da Luz (o verdadeiro; Otília ainda hoje diz do Estádio antigo esta palavra honesta e genuína: o "verdadeiro"), em que, por maus preparos e ineficazes antecipações, Otília ficara sem pão nem cerveja em frente a uma horda de benfiquistas sedentos, esfomeados, desvairados, alucinados, dementes. Culpa, claro, uma e outra e mais outra vez, da nora que, tendo ido de manhã tratar das unhas dos pés, se esqueceu acidentalmente (Otília reforça sempre, quase 30 anos passados, o a-c-i-d-e-n-t-a-l-m-e-n-t-e com uma projecção que fere fundo em quem a ouve) de passar pela panificadora e pela Central de Cervejas. Como se fosse possível alguém acordar um dia e desmemoriar o cérebro para função tão fundamental, como se um ser humano - na palete existencial entre o profundamente bronco e o brilhantemente genial - pudesse esquecer-se de tais ofícios e deveres.

As gentes aos urros, vociferando impróprios impropérios futebolísticos sobre Otília, queixando-se, esfomeados, da pouca-vergonha que era aquela barraca de madeira sem pão para o conduto nem líquido para a goela. «Nunca mais cá volto, ah é certinho», ouviu Otília a mais de 342 benfiquistas em fúria, chorando por dentro a perda da reputação tão a pulso conquistada a amor, carinho, saborosíssimas gorduras feitas de ancestrais segredos que sobreviveram na família Casimiro séculos e séculos e séculos até desaguarem nos seus truques mágicos de mulher veloz a tratar os comeres. Disso nunca Otília se esquecera na vida e disso fazia questão de recordar pelo menos uma noite em férias - não para estragar o convívio estival, mas para alertar os parceiros de ofício e de vida para as profundezas mórbidas do desconcertante desleixo dos elementos. A nora Fátima tudo isto ouvia e calava - engolia em seco, olhava o horizonte, agarrava-se vezes sem conta ao copo de fresco verde e deglutia, sem botar faladura, uva, água e humilhação. O filho, cansado de ouvir os gritos da esposa (que Fátima no recato do lar ganhava novas coragens), desvirtuava o discurso da mãe, parodiando: «ao menos isto agora dá para rir», o que enfurecia ainda mais Otília e a fazia dar pontapés debaixo da mesa ao marido - que não estava minimamente interessado na conversa, perdido de uísque, lagosta e visões de mulheres lindas passeando cães no calçadão.

Otília era Benfica pela parte do Pai; benfiquista por influência da mãe. Em nova (há quanto tempo), comovia-se com José Águas: uma paixão que lhe durou a vida inteira e ainda não esqueceu - atrás das garrafas, junto ao bibelot de uma menina triste que tem na prateleira de cima, mora ainda o elegante benfiquista levantando uma orelhuda Taça dos Campeões. Por decoro e respeito ao esposo, fixou-a ali para que só ela o veja. Quando alguém pede um Martini (é tão raro pedirem Martinis nas rulotes), ela esquece-se das febras, segurando o antebraço do Manel: «deixa, eu sirvo; está um calor insuportável nas carnes».

Sente saudades do Benfica, Otília. Saudades de ser feliz, indo ao estádio. Comove-se muito com a alegria das pessoas antes dos jogos; entristece-se com a tristeza das pessoas depois dos jogos. No meio, enquanto as pessoas se alegram ou entristecem a ver o Benfica, ela fica sentada num banquinho de madeira a ouvir o relato. Cansada, de olhos cheios de fumo e bochechas encarnadas de calor, fecha os olhos e encosta a cabeça contra a porta da rulote. Imagina que está dentro do estádio, ouve as jogadas e vê tudo por dentro dos olhos. Quando é golo, festeja com o marido, o cunhado, a nora e os filhos. Imitam o som das bancadas: «Glorioso SLB, glorioso SLB», lá do alto de onde vêem só luzes e um fumo que sai do relvado, sobe as bancadas, torneia os tectos e se esvai em direcção ao céu. Todos aos saltos na rua, correm até ao viaduto, batem em carros, apitam buzinas, abraçam-se uns nos outros todos engalfinhados. Depois, quando o golo perde o prazo de validade dos afectos, voltam silenciosos para perto da rulote e baixam o volume do som para favorecer outro golo - se ouvirmos baixinho o relato, potenciamos novo milagre.

Dependendo do resultado final, Otília assim também depende de si própria. Se o Benfica ganha, está tão feliz que se torna mecânica no ofício - ninguém quer saber da qualidade da febra se ganhou. Se o Benfica perde, fica tão triste que faz questão de preparar as melhores iguarias para os olhares e gestos e palavras desiludidas dos clientes que estão quase quase a chegar - pior do que a derrota, só mesmo a injustiça de lhe juntar uma ceia tão mal servida.

Otília finge sempre que não nos observa. Se olharmos para ela, os seus olhos estão na grelha; se não olharmos, ela olha-nos com amor e ternura. A dor nossa é a dor dela. A sua infelicidade é a mesma que sentimos. É por isso que Otília faz brilhar os olhos sempre que, perdidos ou ganhados, lhe dizemos com o coração na boca: «Estas são as melhores bifanas do mundo».

domingo, 5 de novembro de 2017

Os Caminhos do 4-3-3

Em Março de 2013 Jorge Jesus dizia:

"Não é necessariamente um modelo para as equipas pequenas mas, para mim, é o mais fácil de anular."

Realmente se olharmos para a táctica no papel é com esta ideia que ficamos.

Quatro defesas como normalmente as equipas se apresentam.
Três homens no meio campo a assegurar o equilibrio e a posse de bola mas longe dos sectores ofensivos.
Dois extremos sem apoios. Isolados junto às linhas.
Um avançado preso no meio dos centrais numa luta titânica de um contra o mundo.

No papel, na base da construção do 4-3-3, é isto que vemos. Esta táctica transmite-nos um equilibrio defensivo com um meio-campo controlador mas com uma quase total inoperância ofensiva.

Basta fechar o avançado e encostar nos extremos e o adversário não ataca.

O 4-3-3 fica então anulado, incapaz de criar e de projectar jogadas ofensivas.

No papel o actual treinador do Sporting tem razão. O 4-3-3 é o sistema mais básico, é a táctica que menos exige a quem o defronta e mais exige a quem o utiliza.

É esta a grande magia do 4-3-3 - A exigência que impõe a quem actua nele.

Um 4-3-3 defensivo, com três motas no ataque, pode ser utilizado sempre naqueles duelos de Pequenos vs Grandes.

O 4-3-3 ofensivo só pode ser utilizado por Grandes que tenham uma mente brilhante no comando (Pep Guardiola por exemplo).

Este sistema só por si oferece estabilidade defensiva, equilibrio no meio-campo e posse de bola. Um treinador que seja também um maestro irá oferecer-lhe um caracter ofensivo não advinhável.

Batuta na mão, indicar os intérpretes e começa a música.

A linha de 4 defesas perde três elementos.

Um lateral é extremo. O outro é médio.

Um defesa dá dois passes em frente. O outro visita o trinco.

O trinco é construtor.

Os médios são vagabundos. Pac-Men das linhas de passe. Comem todas.

Os extremos perderam a linha. Um troca os olhos aos centrais. Outro junta-se aos médios, abrindo espaço ao lateral.

O avançado? Outro Pac-Man. Come todos os espaços.

Um carrossel de emoções. O 4-3-3 rapidamente se transforma num 1-7-2. A bola avança e aparece o 1-3-6.

Os médios que construíam andam agora pelas zonas de finalização.

Que defesa a 4 consegue lidar com 6 avançados? Que dupla de centrais não perde o norte quando a sua referência de marcação desaparece e lhe surgem dois criativos pela frente?

E o lateral o que deve fazer? Agarra o extremo que fugiu para dentro? Corre atrás do lateral adversário que aparece que nem uma flecha? Fecha no avançado que ali apareceu na procura da tabela?

Mas agora perdeu-se a bola. Como defender com só um defesa?

Pressionando alto. Dos 6 avançados 3 atiram-se aos defesas. Os outros 3 cobrem-lhes as costas, juntando-se aos 3 que estavam na linha média do campo. E já estamos num 1-6-3.
O adversário sobe, quatro médios vão à pressão, outro recua para junto do central e o outro cobre o espaço. Estamos num 2-7-1, com os extremos a recuperarem a zona de pressão do segundo terço do terreno.

A bola não vai chegar controlada ao nosso terço defensivo. Pelo menos não pelo adversário. Mas chegando estão lá 2. Aliás, já estão 4. Ou 5. Ou 6.

É que o Futebol, pelo menos aquele que mais me encanta, é um jogo de apoios, é um desporto colectivo onde todos jogam unidos em cada zona do campo.

E esta é a maravilha do 4-3-3. De um equilibrio parte-se para um desiquilibrio trabalhado.

É a táctica que mais exige dinamicas, mais exige inteligência, mais exige criatividade e mais exige trabalho. É portanto uma táctica talhada para os melhores.

Sempre quis um 4-3-3 no nosso Benfica. O Jorge Jesus é um treinador de dinâmicas mas avesso à posse de bola e ao controlo do jogo. Gosta de uma equipa de ataques rápidos. Pelos menos assim o era no Benfica. Deixava a criatividade para os atacantes e por isso jogava logo com 4.

Sabia que para vencer em Portugal não tinha de controlar mas sim de esmagar. E o caminho mais fácil para tal era largar 4 atacantes criativos nas defesas adversárias. Daí o seu muitissimo trabalhado 4-2-4.

Já o Rui Vitória é um fã do 4-3-3 - sistema de jogo que tentou implementar no Benfica assim que cá chegou.
Faltou talento e faltaram ideias. O 4-3-3 que trazia era um 4-3-3 de contra-ataque e não o soube transitar para um clube dominador.

Rapidamente cedeu aos processos que já eram naturais a esta equipa. Os maus resultados assim o exigiram.

Mas o 4-2-4 não é o seu habitat. Tem vindo a procurar variações que o deixem mais confortável, que deixem a equipa mas próxima de um sistema de 3 médios. Seja jogando com um médio interior direito ou jogando com um segundo avançado em zonas de construção.

Olhemos para o papel.

Fejsa com Renato; Pizzi mais encostado à direita mas procurando espaços interiores; Jonas a cair para a direita; Nico na esquerda; Mitro no centro do ataque. 4-3-3.

Fejsa com Pizzi; Salvio na direita; Cervi na esquerda; Jonas a vir buscar jogo ao centro do terreno; Mitro no centro do ataque. 4-3-3.

São algumas variações do 4-3-3. São variações que criam maiores equilibrios e apoios no 4-2-4 de Jorge Jesus, perdendo-se aquela vertigem que era sua marca.

O actual treinador do Benfica continua na sua senda por criar uma equipa à sua imagem. Quer recuperar o seu 4-3-3. Nada contra Mister. Só não gosto do caminho que tem seguido.

Esta época já vimos Rui Vitória lançar um 4-3-3 puro. Contudo é sempre num contexto defensivo. Quer os 3 médios não para os apoios ofensivos mas para tapar os buracos defensivos. Por isso apresenta sempre o um triângulo não invertido, com dois médios trabalhadores na base.

E esta é uma base da qual parece já não abdicar.

O vértice mais ofensivo tem sido oferecido ao Jonas, pelo menos enquanto não puder abdicar de um sistema com dois avançados.

Neste caminho temos perdido os nossos dois construtores de jogo. Pizzi e Jonas. A inteligência, a criatividade, a mobilidade. A cola da equipa. O mister começa a não saber o que fazer com eles.

E não são os únicos. Olhemos ao Zivkovic, extremo a quem "falta rasgo".

No entender de Rui Vitória o 4-3-3 é um sistema de contra ataque. 3 médios para fechar, dois extremos para rasgar, um avançado para finalizar.

Mas num clube grande, numa equipa que tem de partir uma linha defensiva de 10 jogadores, tal sistema não funciona.

Esta época os problemas defensivos eram óbvios. O treinador do Benfica respondeu reforçando defensivamente o meio-campo. Assim surgiram agora os problemas criativos.

É que ainda por cima "O Jonas não pode jogar em 4-3-3 pois não consegue actuar sozinho na frente". Esquecendo-nos nós que neste sistema, pelo menos quando montado para dominar dinamicamente, nunca um avançado actua sozinho no centro do ataque.

O Rui quer um 4-3-3. Terá dedos para este piano?

Os caminhos do 4-3-3 são infinitos. Receio que o nosso treinador esteja a optar pelo caminho da perda dos criativos.

E a magia do 4-3-3 está na criatividade.



sábado, 4 de novembro de 2017

Aqueles Jogos na Nossa Quintinha

Trimmmmm

Hora de almoço. Mas mais que isso. Hora de calçar as chuteiras. Hora de alguém ir a correr marcar as balizas.

"Leva a minha camisola."
"A minha também!"

Sopa. Prato. Fruta.

Sair do refeitório e desatar a correr. Uns por aqui. Outros por ali. Cada um pelos seus atalhos. Todos com o mesmo destino - o pó da bola a rolar no pelado da nossa Quinta.

Temos balizas. Falta a bola. Quem tem bola? Temos adversários.

Chuteiras, pó, calções, pedrinhas, t-shirt, suor e sol.

"Quem vai à baliza?"
"Últimos!"
"Penúltimos!"
"Bora começar! Já perdemos 10 minutos!"

E rola a bola. Todos nós, todos crianças, todos na mesma correria, dezenas de pernas no mesmo movimente desenfreado por todo aquele pelado.

Há bolas por todo o lado. Umas invadem campos alheios. Outra foi para o galinheiro. Outra subiu a rede e caiu na mata.

Aparecem os fintinhas. Aparecem os primeiros esfolamentos. Aparecem os petardos de força. E lá vêm as mãos agarrar de dor locais onde a bola nunca deveria encostar.

Surgem as primeiras discórdias.

"Saiu!"
"Não saiu!"
"É nossa!"
"Não, é nossa!"
"A bola é minha eu é que mando."

O vento bate na cara. A bola está dominada. Em velocidade ele passa por um, tabela com o amigo, passa pelo terceiro, vai rematar, vai ser golo... e o lance é varrido.

Bola lá para o fundo. Pedras no joelho. Mãos esfoladas.

"Falta!!! É falta."
"Foi limpo! Foi na bola. Não sejas maricas, joga à bola!"

Começa a confusão. Todos correm uns para os outros.

Mas rapidamente lá aparece o do costume. Agarra a bola, chuta para o adversário. Sabe que a bola era da sua equipa mas não quer perder tempo. Ele só quer é jogar.

"Não há nada. Segue o jogo. Vamos jogar."

Está confiante que não precisa daquele falta para ganhar. A seguir corre mais para compensar a sua equipa.

É um jogo entre amigos e colegas. É um jogo entre miúdos que só se querem divertir antes de voltarem às lições sobre os Rios Europeus e as Datas dos Descobrimentos.

O importante ali é jogar, correr, passar, rematar e marcar.

A simplicidade juvenil de um Futebol onde tudo o que importa é ver a bola rolar.

Mas a infância esmorece na idade adulta. Duas equipas já não podem decidir sobre uma falta, de quem é o lançamento e nem se a bola entrou. E imaginem quando se mete o fora-de-jogo ao barulho...

É necessária ajuda. Quem decida por nós. Uma pessoa. Um árbitro. Acertada ou errada, é necessária uma decisão que permita que o jogo continue.

O Futebol é um jogo onde duas equipas disputam a bola e a tentam colocar na baliza adversária.

Duas equipas. Duas balizas. Uma bola. Golo.

O árbitro vem ajudar o jogo a fluir. O árbitro vem tomar as decisões que adversários não conseguem tomar. E a equipa de arbitragem vem ajudar o árbitro a decidir bem.

A nossa infância está tão distante que já nos esquecemos de como aqui viemos parar.

Atacamos quem nos vem ajudar. Sem razão. Com razão. Sem piedade. À bruta. Sem escrúpulos. E só porque sim. 

Para quê dificultar ainda mais o que foi criado para nos permitir jogar?

Naquele pelado o jogo parava por não haver decisão. No relvado agora pára para se contestar cada decisão.

Em tempos idos, o professor de ginástica era uma benção.  Era o professor e o que ele dizia era ordem. Ponto. E o jogo seguia.
Até sempre Stôr Dario. Bem haja Stôr João Pedro.

Mas agora nos estádios exigimos o mais bem preparado de todos. Exigimos que não erre. Nunca. Pelo menos não contra nós. Exigimos que siga a nossa decisão.

Na quinta o miúdo dava a bola ao adversário só para poder jogar mais um pouco.
Hoje o dirigente pede processos, exige jarras, aponta corrupção, contrata pessoas para questionar o árbitro e pede faltas de comparência.

O miudo defendia o jogo. O crescido ataca-o.

Esquecemos as raízes. As origens do jogo. O valor desta paixão. A necessidade que esta acarreta. 
Com ou sem razão, criticamos cada decisão.

Nunca serei contra as contestações, as análises dos lances nem à exigência de desempenhos arbitrais cada vez melhores.
Só não posso aceitar que tão facilmente percamos noção do motivo de existir um árbitro. Não consigo assumir por regra que a equipa de arbitragem existe para prejudicar. Não entendo que percamos o discernimento de perceber que uma decisão errada não passa somente disso e que o erro apenas nasce da necessidade de o jogo continuar. 

Vivemos num Futebol onde o árbitro é o vilão. Não percebemos o seu papel. Não entendemos as suas dificuldades. Não reconhecemos o seu contributo. É mais uma equipa que joga contra nós. É um individuo ali colocado para nos prejudicar. Há sempre uma intenção malévola no seu apito.

O importante já não é a bola rolar. 

É o Futebol negócio cada vez mais indiferente à paixão do jogo.

É um jogo já tão distante daquele que disputámos naquele campo.

É a saudade dos tempos jogados lá naquela velha Quinta.

São as memórias que não me falham.