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terça-feira, 3 de setembro de 2013

As minhas namoradas não são doentes pelo Benfica

Nunca tive uma namorada doente pelo Benfica como eu. Tenho vários amigos doentes pelo Benfica como eu, o meu Pai era doente pelo Benfica como eu, o meu avô doente pelo Sporting como eu pelo Benfica, mas uma namorada doente pelo Benfica como eu, nunca tive. Dou-me por satisfeito quando elas dizem, entre o enfado e a vontade de me agradar: "sim, sou do Benfica". Assim, como quem diz: "gosto de iogurtes de manga" ou "não está mau tempo, não", enquanto pintam as unhas, fazem um charuto, comem cereais ou dão festas ao cão. 

Invariavelmente pego naquela frase ("sim, sou do Benfica") e lanço-a na estratosfera do pensamento, onde ela rodopia, consome os trilhos todos terrestres das entretelas do cérebro, é filtrada à velocidade da Luz e, antes que venha outra frase atrelada, já todo eu estou inundado por uma certeza fingida de que finalmente, anos e anos depois da procura, encontrei uma mulher que é tão doente pelo Benfica como eu. É uma mentira. E é fingida. Mas faz-me bem, não vá eu assinar logo ali os papéis do divórcio enquanto vocifero de forma grotesca: «O Benfica não é um iogurte, foda-se!».

A M. não gostava de futebol; era artista, aos 13 anos já pintava oceanos nas aulas de matemática. Ficávamos sempre juntos, na fila do meio, lá atrás. Escrevíamos bilhetes um ao outro, com as nossas pernas juntas formando as pernas de outro ser entre nós, que era a minha perna direita e a esquerda dela - o amor adolescente ali todo vingado, não chegando o toque, precisando de palavras escondidas em papéis dobrados que dávamos um ao outro por baixo da mesa, só para fingir que ainda havia coisas a dizer. Nos intervalos, entre beijos, apalpações, cigarros, risos, ela perguntava-me: «gostas do Benfica porquê?», e eu nunca sabia explicar-lhe o que estava tão dentro de mim e tão fora dela. Foi só quando - após o Benfica-Vitória de Guimarães de 1994, jogo de festa do título, jogo em que pude pela primeira vez pisar o relvado da Luz e o meu Pai me içou para cima da trave da baliza do Neno - no dia seguinte apareci com os bolsos cheios de relva e a espalhei por cima da mesa numa aula de Religião e Moral, que ela percebeu. O amor veio todo numa pergunta que transportava todas as certezas do mundo: «tu és doente pelo Benfica, não és?»

Conheci a S. porque não podia passar a minha vida sem conhecer a S., apesar da timidez e medo que ela distribuía por todo o eu dentro de mim. Mulher gloriosa, de beleza lunar, cabelos como chicotes nos reflexos do Sol, menina doce, trópicos todos aos desvarios, mundo ao contrário. Era benfiquista de iogurte, dava-me esperança e acalmava-me as dores enquanto se passeavam pelo campo estrelas como Pembridge, Leónidas ou Jorge Soares. Eu dizia-lhe: «isto não é o Benfica», e ela, sem entender bem o que seria o Benfica, amaciava-me as dores com o carinho milenar aprendido não pela forma ou pelos hábitos mas, antes disso, pelos séculos de amor massacrado que as mulheres têm dentro e carregam com desprezo e orgulho, no fim com ternura. Vivemos o Benfica juntos pela rádio e pelo «A BOLA», ouvindo relatos nas nossas viagens ou quando lhe pedia para ir lendo o jornal enquanto eu conduzia. «Vai directa às páginas do Benfica», e ela lia-me integralmente aqueles textos enfadonhos do Serpa, do Santos Neves ou do Delgado. O que não faz uma mulher por um homem; o que não faz um homem pelo Benfica. 

A T. era sportinguista. Tinha vezes em que ia ao estádio com o Pai. Fui com ela ver um Sporting-Boavista, um jogo em que pela primeira e única vez apoiei a equipa de arbitragem. Por mim, era expulsar aquela gente toda - tudo para a rua, se possível após lesões gravíssimas de anos a fio ou mesmo crudelíssimos finais de carreira. Levava o seu cachecol verde e branco aos ombros e eu, confesso, apesar da evidente má escolha de cores, olhava para ela com um encanto tal que até consegui perdoar-lhe o facto de ter sido campeã nacional aos gritos para cima de mim, numa histeria de sede e fome que só 18 anos podem dar aos adeptos. Depois beijava-me, tinha pena de mim e do Benfica que era eu. Com pouco orgulho, revelo: tive amor por aquela alegria e por aquela pena. Já que o Benfica não podia ganhar, que fosse a T. a campeã. E, no final da noite, acabámos os dois com o título nacional.

Como falar da D.? Uma mulher esquisita - não no termo português, mas no dos outros países. Uma mulher fenomenal. Curiosíssima, peculiar, melancólica, destrutiva, sonhadora. O pai um senhor benfiquista dos sete costados - tardes e manhãs e noites a fio a debatermos Benfica -, a mãe recatada, quase ausente. D. tinha o orgulho de filha que ama o pai de todas as formas lindas que podem servir de amor ao pai e, por isso, não porque o futebol lhe dissesse ao ouvido e ao coração coisas irredutíveis de adepta, era do Benfica. Chateava-se, D., no entanto, com as minhas recorrentes incursões aos fins-de-semana atrás da equipa. «Não podes passar um caralho de um Sábado sem ires para Guimarães?»; «Tens mesmo de ir esta Sexta para Coimbra?». Eu fazia um olhar de cão abandonado, ela dava-me festas no lombo e no dia a seguir lá estava eu a enviar-lhe mensagens: «Estamos a perder», e punha um tristonho :( para ela não se zangar muito comigo. Uma vez levei-a a Alvalade, para ela viver o Benfica no estádio do rival. Ao intervalo, estávamos a ganhar 2-0 e ela estava orgulhosa de mim: afinal fazia sentido tudo aquilo. Depois acabámos por levar 5-3, num jogo memorável. Continuou com orgulho de mim e do Benfica. Uma mulher de facto «exquisite».

A E. era actriz. Detestava tanto o futebol que nem se importava de, amando-me, me ferir de todas as formas possíveis sempre que o Benfica empatava ou perdia. Nunca conheci mulher mais terna na vida terrestre - afinal, a vida sem bola - e mais cruel quando havia futebol pelo meio. A E. tinha, digo eu, ciúmes do Benfica. Em 2011, na meia-final da Liga Europa, saí da Pedreira à procura de uma arma que acabasse logo ali com o sofrimento. Queria alguma absolvição. Liguei-lhe e ela riu-se. Vingou-se do Benfica em mim, rindo-se e rindo-se e rindo-se e rindo-se. Quando acabou de rir, riu-se mais um bocado. A E. achava que o futebol era uma menoridade existencial - debate que tivemos, vezes sem conta, entre muito elemento que diverge da sobriedade e que, ainda assim, nunca resolvemos. Apeteceu-me gritar Benfica numa peça em que ela fazia de escrava e a luz favorecia o grito anónimo. Não o fiz. Anos depois, cheguei de Amesterdão com uma cara de três mil mortes. Não me disse nada; abraçou-me. À sua maneira, há-de ser do Benfica até ao fim.

Tu és a C.. Tens dentro de ti o que diferencia os seres: tens amor. Vamos trilhando sem medos o que ainda está para vir. Melhor maneira de dizer não tenho: quero ao Benfica o que quero para nós: eternidade. 



quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Manif pelo Benfica


Ou é de mim ou era do meu Pai - vai dar no mesmo -, mas tenho sempre esta ideia de que o Benfica é mais importante do que a Selecção e até, claro, do que o país. Não compreendo bem os avulsos vómitos sobre Portugal - não que não aprecie passear-me pelos campos ou deslumbrar-me numa serra, aquietar-me em frente ao mar, de uma nação que clama por muito absolvimento. É só que acho as fronteiras linhas imaginárias de coisa nenhuma, criando burocracias ou lutas bélicas em espaços de liberdade. Cheiremos: a Andaluzia é o Alentejo com presuntos à volta; a Beira é a Extremadura com queijos à volta; a Galiza é o Minho sem rojões à volta. E o resto é Lisboa, Valência, Barcelona, o Douro e o País Basco. Nada que nos faça o coração desesperar. Somos iguais ou quase.

Lembro-me de observar o meu Pai no Mexico 86: as suas formas de golo, os seus instintos mais primários, as doses de álcool que sorvia. E, apesar de não compreender tudo de uma psicologia de Daniel Sampaio - onde portugueses e espanhóis deixaram os beiços ibéricos -, notava-lhe de forma clara a falta de Benfica, que é todo um conceito que gira em redor de um amor tão estratosférico que às vezes fere a alma e dilacera o coração. Portugal perdia e era uma chatice, as pessoas lá em casa comentavam: "Olha, Portugal perdeu", mas eu não sentia que o mundo provavelmente fosse acabar como sentia quando o meu Pai chegou de Viena ou de Estugarda. Ali, de facto, e apesar de todos os rolos de carne enfeitados a molho de tomatada e das simpatias e beijos com que recebemos o nosso herói que vinha de autocarro horas - dias? - a fio pelas estradas de uma Europa ainda solidária e cheia de permanentes e enxumaços nos casacos, ali, naquele lugar da sala, eu senti uma tristeza milenar, alguma coisa que ia resolver-se ao longo dos anos, vertendo, dia a dia, uma chuva de lamúrias que fomos tentando absorver com o cuidado de pinças para não criar pesadelos no coração daquele benfiquista.

Olho o mundo, as ruas, os cafés, o estádio e o facebook. Gente tão incisiva, tão pronta à crítica mordaz e aflita sobre os nossos políticos e a situação financeira - monstro viral que se acumula e faz-nos sentir pecinhas de puzzle ou peixes adormecidos em aquários. Toda a gente tem uma opinião e uma voz que se levanta, indignadíssima!, acerca dos Gaspares e dos Relvas, virando alcoolémias mil, tratados revolucionários, pedidos de clemência, insatisfações, vontades de eterno, criações demoníacas. Os políticos portugueses são uma corja de delinquentes!, exclamam os mais atentos, na loucura dos sentidos. E apelam muito à desordem, à liberdade da opinião, apelam ao sentido crítico, à necessária inteligência associativa e solidária. Tudo é exigência e luta, tudo é criatividade e desespero, tudo é botas da tropa enfiadas nuns pés preparados para a guerra. Vamos à nova manifestação! Onde é que é agora? Em Belém? Nos Restauradores? Na Avenida da Liberdade? No Marquês? Em Cacilhas? Dentro de uma casa-de-banho? Vamos, que o país - esse conceito universal dos sentimentos - precisa de nós.

E o Benfica? E o Benfica, onde fica? Entre desejos românticos de crenças místicas, no lugar das transcendências quotidiadas, no refúgio de uma vida de luta. O Benfica nunca existe como espaço que devemos levar no nosso mais profundo coração e lutar por ele. Fica entre duas manifestações, no meio do horário de emprego, na chatice de mais um dia, na aceitação da banalidade. Os mesmos que intransigentemente vociferam contra as injustiças sociais, éticas, morais e de costumes sobre os políticos, desenvolvem todo um mecanismo de relatividade, de compreensão, até de alguma resignação pelo estado do clube. O Benfica é futebol, vai-se ao estádio apoiar, dizem-se umas chalaças, sai-se a dez minutos do final do jogo, apanha-se o carro e vai-se para casa ligar o computador para dizer mal do governo.

Se calhar é de mim, ou então do meu Pai, o que é a mesma coisa, mas as fronteiras que me existem são do domínio dos clubes e dos golos, das jogadas que não acabaram nas redes ou das decisões que fizeram afundar ou elevar o meu clube. Se o vejo afundar-se num mar de equívocos, apetece-me ir de bandeira vermelha em riste para a Avenida da Liberdade clamar pela sua sobrevivência. O país é um lugar estranho onde estranhamente nascemos. O Benfica não, foi-nos nascido.


 

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O benfiquista religioso

É um problema: o Benfica está carregadinho de benfiquistas. Uma praga autêntica. Tivesse o Benfica menos benfiquistas e o mundo seria um mundo melhor. E o Benfica um clube melhor. O problema adensa-se quando nos deparamos com o facto de, além de o clube ter demasiados benfiquistas, ter muitos religiosos. Demasiados.

O benfiquista religioso é aquele para o qual a equação se resume a uma regra simples: o Benfica é sempre melhor e ganha sempre; se deixa de ganhar, a culpa estará noutra qualquer razão, transcendental ou não, mas sempre alheia ao próprio clube e a quem o serve. 

O benfiquista religioso não acredita em culpas próprias - que ignomínia! -, muito menos reflecte sobre a possibilidade. Crê na injustiça extrínseca - algo ou alguém está contra nós. E o mundo, esse vil e cruel lugar, há-de tudo fazer para que o Benfica não ganhe. 

O benfiquista religioso tem uma equação própria: o grau de confiança nos outros é directamente proporcional à evolução de poder que os outros têm no Benfica. Se é Presidente, confia-lhe a mulher, os filhos e até o strap-on que religiosamente guarda na despensa da cozinha (para os momentos mais secretos); se é adepto como ele, acha-o um traste de primeira e não se coíbe de brindar o semelhante com toda a gama de insultos - geralmente pouco imaginativos - de que dispõe no seu vernáculo-vocabulário primata. 

Para o benfiquista religioso não interessa que o Deus em que acredita seja o mesmo que, pelas suas acções, vai contra tudo o que supostamente defende. Se um Presidente do Benfica apoia corruptos, o benfiquista religioso não se pergunta sobre isso, antes arranja forma de defender o facto com alguma teoria retirada da despensa (geralmente com um strap-on enfiado no olho que é cego): há-de ter estratégia, tudo isto. E inventa para si e para os outros razões superlativas pelas quais cegamente crê num ser que não existe. 

O benfiquista religioso é de amores. E de ódios. Se ama, vai até ao fim do mundo na defesa dos seus deuses; se odeia, enxovalha e humilha até ao fim da sua vida. O Benfica neste processo interessa muito pouco, quase nada. Importa sim odiar ou amar, ser deste ou daquele, crer ou descrer com toda a infinita pujança a que um ser humano pode almejar. 

O Benfica está carregado de benfiquistazinhos. Daqueles que, por óbvia incapacidade, vêem o clube como uma tasca de afectos e guerrilhas. Não interessa a discussão, o vinho que chegue e aos litros - logo se verá se o clube sobrevive.

Mas cuidado com o benfiquista religioso - a ressaca pode ser nefasta. E os amores tornados ódios de repente, sem aviso nem anúncio, só cerebelos electrocutados na visão da realidade. E, num instante, num jogo, num momento específico, metamorfoseiam-se crenças em crueldades e vai tudo a eito, ódios e amores, guerras e ternuras, gestos e lugares obscuros. 

Não há nada mais difícil para o benfiquista religioso do que ser confrontado com a verdade. Assim como ele acredita que o mundo é gerido por osmose pelo filho de um carpinteiro nascido há 2000 e tal anos, assim ele vê os seres do Benfica que ama e defende. E tal qual aqueles nomes horríveis que um dia, perdido de bêbado em frente ao muro de uma estação, chamou ao deus-menino (só porque havia descoberto que o vizinho da frente afinal ia lá a casa não só para arranjar os canos da cozinha), assim ele é quando descobre que anda a defender uma canalha de incompetentes. Perde-se muita fé no processo, naturalmente.

Mas o benfiquista religioso tem esse poder intangível da sublevação silenciosa: um dia é isto, no outro dia já é aquilo. E nem ele nota a evolução do processo que o faz ser graduado e até doutor na escola da incongruente imbecilidade. Vai atrás do cérebro, aos saltinhos, povoado de incompreensão. Alguns acordam, a meio da noite, suados, tremidos, agitados. Uma impressão de alguma coisa que não compreendem. "Serei boçal?", perguntam-se, mas logo entendem que a palavra lhes é desconhecida e que o mundo afinal é essa grande loja dos chineses que, tendo tanta coisa, não tem nada para eles.





domingo, 22 de janeiro de 2012

Vizinhos e quejandos

Não sei o que é mas não estou a gostar deste dia. Começou ao contrário, às avessas. Os gajos de cima andam aos saltos a ouvir Shakira há quase duas horas, gritos histéricos, saltos, risinhos de felicidade. É possível ser feliz com Shakira? Piqué tem a palavra. As vozes são de Sims, quando os bonecos dançam e cantam. E eu desconfio sempre de quem parece um Sim. Não tarda nada começam a chorar porque não tomam banho há 3 dias e o lixo amontoa-se na cozinha.

O meu problema com isto é que preciso de paz. Preciso de pensar o Benfica. Nada de muito filosófico, só aquele refazer o 11 na cabeça, preparar os filhos que não tenho para irem ao estádio, sonhar com uma bifana no Manelito. Coisas simples e práticas que a ouvir o histérico do Robbie Williams não dá. 
 
Estou com medo deste jogo.