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sábado, 23 de julho de 2016

Sempre Houve um Futebol Moderno

Ontem fui ao cinema ver o Pelé: Birth of a Legend.

Com todos os seus defeitos, alguns bem gritantes, o filme deu-me um grande prazer. Os momentos de futebol estão muito bem protagonizados e é maravilhoso ver a contextualização do futebol brasileiro puro com a origem daquela povo.

O filme fez-me perceber ainda mais como é pena haver tanto desconhecimento sobre aqueles tempos e tão pouco interesse em se saber mais.

Grandes, enormes e maravilhosos jogadores vão ficando no desconhecimento da história por terem brilhado num altura tão longínqua.

Hoje em dia quando se fala de Pelé como o melhor ou dos melhores de todos os tempos parece que o fazemos por decreto, porque assim está estabelecido. Isso reduz a nossa crença naquilo que realmente foi Pelé e quase nos esquecemos que tem de haver um motivo para ele ser reconhecido como é.

São muito bem-vindos mais filmes destes sobre a história de futebolistas e do Futebol. Mais filmes sobre selecções, sobre grandes figuras, sobre Mundiais. Mais filmes que nos façam viver um pouco aquela altura do futebol que se vai perdendo na história.

A altura do lançamento veio muito a calhar.

Toda a malta da CBF, equipas técnicas brasileiras e jogadores de topo (e não só) brasileiros, devem ir ver este filme.
O Futebol brasileiro está a passar por uma fase semelhante à do inicio da década de 50. O Dunga necessita muito ver este filme.

O Futebol evolui, as equipas devem adaptar-se mas nunca podem descaracterizar-se. O Brasil dos últimos 10 anos é uma sombra de si mesmo. É uma selecção a tentar ser o que não é e a desperdiçar aquele talento para o jogo bonito que sempre maravilhou o mundo.

A ginga brasileira desapareceu quase por completo daquela selecção depois de 2002. O Ronaldinho e agora o Neymar têm sido quase uma excepção num país onde deviam ser a regra.

Em todo o mundo mas principalmente no Brasil o futebol de rua tem-se quase extinguido. O surgimento das academias nos clubes é uma evolução natural e um desenvolvimento necessário. Porém não é por se ter melhores condições para se trabalhar que se deve abdicar daquilo que é a raiz do nosso talento e principalmente no Brasil essa raiz é o futebol de rua.

Podem dar balneários, chuteiras, equipamentos, relvados e excelentes bolas aos miúdos para treinarem mas não lhes podem retirar a alegria do futebol. Não se pode andar a treinar as crianças à imagem dos treinos dos adultos. É crucial que as deixem divertir com a bola, que as deixem sonhar nos relvados e que as libertem das amarras do futuro profissionalismo.

É proibitivo utilizarem as melhores condições para acabarem com o futebol de rua quando as podem utilizar para o adaptarem e desenvolverem ainda mais.

Mas não só para o Brasil ver este filme pode ser importante.

Também aqui por estes lados andamos a levar ensaboadelas de futebol moderno que mais não passam de mitos que prejudicam o futebol.
Não nos cansamos de ouvir e ler por aí que nos dias de hoje não há espaço para jogar bonito nem para criatividades individuais. Não nos cansamos de ouvir que hoje para se ganhar só jogando com mais pragmatismo.

Hoje em dia todas aquelas grandes equipas que jogam muito pouco é porque estão com uma atitude mais pragmática. Isto é um insulto à história do futebol da Itália.

Ainda pior que isto são os constantes ecos sobre a necessidade física dos jogadores de futebol. É importante que sejam altos e fortes. Loiros também ou não?

Quantas vezes não vemos o talento ser desvalorizado porque o jogador tem menos de 1,75m?

Até no Benfica há vozes que desconfiam da qualidade do Grimaldo só porque não tem pelo menos metade do estofo do Eliseu. Não é que estes adeptos se tenham esquecido do formidável Léo, simplesmente vão recuperando aquele argumento tão arcaico que repete uma verdade sempre actual "Os tempos eram outros".

Bem não me resta dizer mais nada sobre o filme. Agora é voltar ao cinema mas desta vez para o ver com o meu pai. É que esta é uma história que preciso ver ao seu lado.

sábado, 4 de junho de 2016

Palavra de Deus

"I think the same way as Tuchel. Because like I said when we were young we could play in the street. You can't play in the street anymore. But a lot of times with small children I was playing in the parking lot. So what did that means? It means that the surface is bad, when you fall down it hurts, so you try to learn not to fall down. For small players they quickly understand they've got to be technically much better than the others. Because if he's slow the big one will eat him over and he'll be hurt.

Of couse we had a lot of complains of the mothers, they say "well my child fall down". And I answered the football game is not to fall down. So they have to manage one way or the other"


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Futebol bemol

Aos 31 anos decidi aprender a tocar guitarra. Já tinha tido tentativas, pueris vontades que acabaram ainda antes de começarem. A vez em que fui mais consistente passou-se há ano e meio: agarrei na guitarra linda que a E. tinha, perguntei a uns amigos músicos se podia aprender por mim, decidi com ar muito sério e afirmativo que aquilo era para a vida e aceitei os conselhos deles de ir aos links do youtube que me mandaram para aprender por mim. Fiz dois dias daquilo, discuti e perguntei coisas por mensagens e facebook, desisti logo a seguir.

Aos 9 anos comecei a aprender piano em Abrantes. O mestre Teixeira, orgulhoso e competentíssimo jeová, abria com a mão direita o metrónomo e dizia: «senhor Ricardo, pode começar» e eu avançava sobre o solfejo, repetindo e repetindo e repetindo notas a fio, colhendo teclas pretas nos soluços da imensidão das damas brancas, os dedos todos aos rodopios, como se tivessem vida. Tocava sem sentido, a mão esquerda dedilhando mindinho, o dedo do pirete e o polegar; a direita traçando fortes pancadas com o indicador e o anelar. Aos espaços, bemóis. Ninguém entendia nada daquilo. O professor Acácio Teixeira, de rosáceas bochechas e nervosismos mil, olhava-me os dedos como crimes enquanto o piano, não gemendo mas sofrendo por dentro, pedia algum tipo de absolvição. Eu atacava as teclas com denodo e simpatia, com vontade, com - como não usar a palavra? - volúpia. Sempre me irritei com as pautas escritas em papel. Muito melhor ter nos interstícios do cérebro o futuro quase escrito.

Não era que Acácio sofresse de ausência de pedagogia ou eu próprio soçobrasse ao ensino de Acácio; era só que a vida, naqueles tempos, tinha uma importância tal que passar uma hora a aprender solfejos, metrónomos e pontos escritos num papel era morrer em angústia. Dei um mês de sofrimentos - a Acácio mas sobretudo a mim - e depois segui a minha existência como se não continuasse ainda sendo aluno e aprendiz. Deve ter havido uma hora, um segundo, dois ou três minutos, algum local do tempo em que eu percebi que aquilo, tal qual estava, me prendia ao fundo do mar e me limitava os dias. Ninguém sabe quando foi, mas houve uma hora, ah houve um minuto, que me contou tudo o que eu precisava saber.

E então saía de casa pronto a não ir ter com o Acácio, embora Acácio me esperasse. Da minha casa até à escola de Acácio eram meros 400 metros, viagem tranquila sem motivos de preocupação, não fosse existir no cimo da rua um ringue onde invariavelmente jogavam amigos, saltavam bolas, ouvia-se o som de sapatilhas ou chuteiras contra o cimento, laranjas caíam sobre as bancadas, gritos ecoavam gritando ou golo ou os remates que saíam sobre o golo e levantavam outras vozes de indignação. Eu ia de calções, ténis e camisola do Benfica para a escola de música, que era a minha forma de demonstrar que a aprendizagem do piano deve ser sempre ausente de preconceitos e, num assomo estranho de acasos, acabava a pensar: «vou só ver 5 minutos disto, depois vou ter com o Acácio». 

Sentava-me na bancada ainda com uma consciência de teclas brancas e pretas mas a olhar a bola que, de frente para trás, indo para os lados, subindo aos céus ou tabelando no cimento, me chamava com todos os nomes que as bolas, fabulosas no seu brilho de novas ou fustigadas numa escuridão de cansaços, nos chamam. Ela viajava entre pés e eu via a sinfonia acontecer: bemóis na recepção, semi-colcheias no passe, notas longas e graves quando ela atacava as redes que abanavam e abanava o mundo. O meu mundo. O mundo todo. Só 10 minutos com a redonda nos pés e depois tinha de ir embora.

Nunca ia. A equipa ganhava, o bota-fora nunca mais acabava, as notas só agora estavam a começar, havia mais um jogo e depois outro, no fim aquele passe que acabou na cabeça de um velho amigo e depois dentro da baliza. Eu talvez pedisse, num dentro de mim que era um fora de mim, que aquela bola não tivesse entrado e eu fosse finalmente fintar teclas brancas, confundindo a música com bemóis a meio do jogo, mas o que fazer quando consecutivamente se ganha e a noite já entrou, a aula já acabou, o jantar já esperou, a casa já anoiteceu, o Pai já chamou, a mãe já enloqueceu, a lua já apareceu? 

Suado, camisola do Valdo nas costas, calções aos desvarios, sapatilhas rotas na esquerda que arrasta o remate ou o passe de direita, finalmente chegava a casa. Tinha fome de sede. Sede de fome. O Mozart ia esfomeado.