Aos 31 anos decidi aprender a tocar guitarra. Já tinha tido tentativas, pueris vontades que acabaram ainda antes de começarem. A vez em que fui mais consistente passou-se há ano e meio: agarrei na guitarra linda que a E. tinha, perguntei a uns amigos músicos se podia aprender por mim, decidi com ar muito sério e afirmativo que aquilo era para a vida e aceitei os conselhos deles de ir aos links do youtube que me mandaram para aprender por mim. Fiz dois dias daquilo, discuti e perguntei coisas por mensagens e facebook, desisti logo a seguir.
Aos 9 anos comecei a aprender piano em Abrantes. O mestre Teixeira, orgulhoso e competentíssimo jeová, abria com a mão direita o metrónomo e dizia: «senhor Ricardo, pode começar» e eu avançava sobre o solfejo, repetindo e repetindo e repetindo notas a fio, colhendo teclas pretas nos soluços da imensidão das damas brancas, os dedos todos aos rodopios, como se tivessem vida. Tocava sem sentido, a mão esquerda dedilhando mindinho, o dedo do pirete e o polegar; a direita traçando fortes pancadas com o indicador e o anelar. Aos espaços, bemóis. Ninguém entendia nada daquilo. O professor Acácio Teixeira, de rosáceas bochechas e nervosismos mil, olhava-me os dedos como crimes enquanto o piano, não gemendo mas sofrendo por dentro, pedia algum tipo de absolvição. Eu atacava as teclas com denodo e simpatia, com vontade, com - como não usar a palavra? - volúpia. Sempre me irritei com as pautas escritas em papel. Muito melhor ter nos interstícios do cérebro o futuro quase escrito.
Não era que Acácio sofresse de ausência de pedagogia ou eu próprio soçobrasse ao ensino de Acácio; era só que a vida, naqueles tempos, tinha uma importância tal que passar uma hora a aprender solfejos, metrónomos e pontos escritos num papel era morrer em angústia. Dei um mês de sofrimentos - a Acácio mas sobretudo a mim - e depois segui a minha existência como se não continuasse ainda sendo aluno e aprendiz. Deve ter havido uma hora, um segundo, dois ou três minutos, algum local do tempo em que eu percebi que aquilo, tal qual estava, me prendia ao fundo do mar e me limitava os dias. Ninguém sabe quando foi, mas houve uma hora, ah houve um minuto, que me contou tudo o que eu precisava saber.
E então saía de casa pronto a não ir ter com o Acácio, embora Acácio me esperasse. Da minha casa até à escola de Acácio eram meros 400 metros, viagem tranquila sem motivos de preocupação, não fosse existir no cimo da rua um ringue onde invariavelmente jogavam amigos, saltavam bolas, ouvia-se o som de sapatilhas ou chuteiras contra o cimento, laranjas caíam sobre as bancadas, gritos ecoavam gritando ou golo ou os remates que saíam sobre o golo e levantavam outras vozes de indignação. Eu ia de calções, ténis e camisola do Benfica para a escola de música, que era a minha forma de demonstrar que a aprendizagem do piano deve ser sempre ausente de preconceitos e, num assomo estranho de acasos, acabava a pensar: «vou só ver 5 minutos disto, depois vou ter com o Acácio».
Sentava-me na bancada ainda com uma consciência de teclas brancas e pretas mas a olhar a bola que, de frente para trás, indo para os lados, subindo aos céus ou tabelando no cimento, me chamava com todos os nomes que as bolas, fabulosas no seu brilho de novas ou fustigadas numa escuridão de cansaços, nos chamam. Ela viajava entre pés e eu via a sinfonia acontecer: bemóis na recepção, semi-colcheias no passe, notas longas e graves quando ela atacava as redes que abanavam e abanava o mundo. O meu mundo. O mundo todo. Só 10 minutos com a redonda nos pés e depois tinha de ir embora.
Nunca ia. A equipa ganhava, o bota-fora nunca mais acabava, as notas só agora estavam a começar, havia mais um jogo e depois outro, no fim aquele passe que acabou na cabeça de um velho amigo e depois dentro da baliza. Eu talvez pedisse, num dentro de mim que era um fora de mim, que aquela bola não tivesse entrado e eu fosse finalmente fintar teclas brancas, confundindo a música com bemóis a meio do jogo, mas o que fazer quando consecutivamente se ganha e a noite já entrou, a aula já acabou, o jantar já esperou, a casa já anoiteceu, o Pai já chamou, a mãe já enloqueceu, a lua já apareceu?
Suado, camisola do Valdo nas costas, calções aos desvarios, sapatilhas rotas na esquerda que arrasta o remate ou o passe de direita, finalmente chegava a casa. Tinha fome de sede. Sede de fome. O Mozart ia esfomeado.
5 comentários:
Lol, moravas na Rua de Angola?
Se calhar ainda demos uns toques numa bola, juntos. Muitos dias eu passei nesse ringue, nem sempre a jogar à bola. Foi paragem diária, obrigatória, durante anos da minha vida.
Quem me dera que, hoje em dia, a minha maior preocupação fosse um ralhete da minha mãe por causa de trabalhos de casa, aulas de Inglês ou uma qualquer aula de piano "esquecidos" em favor de um jogo de bola. Bons tempos.
Obrigado Ricardo por estes textos, e são tantos, de um sentir e benfiquismo admiráveis. Aos poucos vais retratando toda a sociedade benfiquista, desde as crianças aos mais velhos, à senhora das bifanas aos sonhadores e treinadores e tantos outros que apareceram nestas tuas histórias. Alguém devia pegar nestes documentos e fazer deles um livro. Eu comprava, te garanto. Grande abraço.
Ricardo: está na hora!No excuses, abre um documento Word e cumpre o destino!
Raios estou a ficar apaixonada pelo Ricardo.
Boa tarde Ricardo,
Já te disse, tu escreve...que eu compro.
Aquele ringue...recordo quase metade da minha vida ali...
Talvez um dia possamos matar saudades...
Aquele abraço meu amigo!
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