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quinta-feira, 22 de março de 2012

Adão, Eva e o Benfica

Uma vez estava em Salamanca, numa fábrica de extintores. Fora ali ganhar dinheiro para comer presunto em barda e beber como se o mundo acabasse nos dias seguintes. Trabalhei, comi e bebi, naturalmente. Fui recebido como um alienígena: não só era português como ia para ser operário. Estranho. Tinha outra vertente: usava fita no cabelo e uma barba que ainda hoje Castro pede ao irmão que eu a empreste. Isto segundo os arquivos mais clandestinos que há em Cuba, que se dividem entre historicismos exacerbados e noções de medicina mais ou menos fidedignas. Ninguém sabe.

Nos intervalos, era giro: perguntavam-me coisas. Desde pormenores sobre o meu país - que supostamente era algo muito distante e intangível - até ao meu clube. Respondi: "Benfica" e não disse mais nada sobre Portugal porque Portugal só pode ser entendido se for caminhado de lés a lés - sem fronteiras. Depois fumámos cigarros e comemos sandes de atum com maionese - eu não, que tinha tido a clarividência de comprar chourição da Andaluzia um dia antes.

"Ah el Benfica" e depois fechavam-se, entre barbas e fatos-macaco, num amontoar de quotidiano. Ninguém sabia, nem eles, ao que iam. Eu acabava o cigarro, dizia "Benfica" e continuava a encher extintores como se disso dependesse a minha vida. E dependia. Até à hora em que larguei o trabalho, deixei o meu fato, apanhei a minha roupa, o meu carro e fui beber cervejas para o meio de Salamanca. 

A meio da tarde, um alemão que estudava teologia. Bebia duas cervejas de seguida e esperava por um shot de amor divino. Sentou-se perto de mim, balbuciou coisas indecifráveis - provavelmente do foro divino -, ajeitou o colete com que se maquilhava e perguntou-me: "where are you from?". Respondi: "Benfica". E ele riu-se e falou-me de Estugarda, mesmo sendo de Dresden. 

Naquela altura tínhamos os dois desistido das crenças, mesmo que fôssemos, os dois, de caminho em caminho, pedra sobre pedra, até um futuro que tinha de ter uma história. Acabámos em Brecht, Almodóvar, Rilke, Zola e até Emiliano Zapata. 

O Benfica vivia nele como coisa eterna. Contava-me histórias dos pais e primos e irmãos e amigos. E deus - essa entidade que é como o autoclismo, vai e vem - morreu e definhou na ponte que o levava até ao amor das coisas que se contam e desaparecem. Foi Benfica, ali. E depois foi mais do que isso. E subitamente, sem anúncio, Deus cortou os pulsos e sangrou até ao ponto de deixar a cor numa bandeira. Foi tudo bêbado para casa.