terça-feira, 29 de setembro de 2015

A BALIZA DOS GOLOS

 CRÓNICA EM TORNO DO MINUTO 70 DO BENFICA-PASSOS DE FERREIRA


Decidi este ano mudar os quatro Red Pass cá de casa para o piso 1, movido pela procura de um ângulo melhor do que aqueles que temos tido no piso 0. E sem chuva também. Vendi-me por pouco, confesso, ao trocar a hipótese da mística do terceiro anel por algum conforto. O ambiente não é bem aquele que esperava. Há demasiadas crianças para pôr em prática todo o meu vernáculo de bola. À nossa volta jazem famílias inteiras, inertes nas cadeiras almofadadas. Aparentemente o conforto adormece-lhes mais o espírito do que as nádegas. E olham para a minha família com ar assustado e reprovador sempre que vibramos efusivamente com as jogadas do Jonas e do Gaitan. Como se fosse natural a indiferença perante a beleza do jogo de Jonas. A primeira parte entediava-me profundamente e, não fosse pelo primeiro golo, bem à nossa frente, arriscava-se mesmo a ser um enorme mar de desalento.

Mas o período do jogo que mais me intrigou, o momento que me leva à crónica, deu-se na segunda parte, próximo da outra baliza. Algo de estranho se passou, algures à volta do minuto 70 deste Benfica - Passos de Ferreira, do lado de lá.
Depois daquele maravilhoso passe de calcanhar do Jonas para o Jimenez, em que a bola descreve um arco parabólico milimétrico, de altura máxima anormal para tamanha precisão, pergunto ao meu filho mais velho se tinha visto aquilo. Ele diz-me que não. Como é que é possível, Guilherme? Num jogo com o Jonas, o máximo que podes dispensar é o inevitável instante do piscar de olhos. Nada mais! Arriscas-te a perder uma obra prima ao vivo. Peço-lhe para se recordar do momento, foi ao minuto 70, mais coisa menos coisa. Tenho que recorrer a estas notas para as rever assim que chego a casa.
Durante os três minutos seguintes estive sempre inquieto. Tudo se passava do lado de lá, na outra baliza, mas a distância teimava em  roubar-me os pormenores. Só conseguia pressentir que era algo de muito grande, uma transcendência à Benfica. Tudo na outra ponta do estádio, para meu desespero.

Tive que sair a correr pouco depois do terceiro golo. Odeio quando isto acontece, mas tocava em Alfama nessa noite. Já no caminho, esticando o carro enquanto ouvia o relato e as entrevistas de fim de jogo, não conseguia parar de pensar naqueles minutos que se seguiram ao minuto 70. Nada de muito concreto daqueles três minutos, só mesmo aquilo de que me lembrava. Faltavam-me peças para completar o puzzle, e o discernimento para lidar com a irritação. Parei o carro e tirei a camisa preta da mala, que vesti à pressa por cima da camisola oficial do Gaitan, enquanto descia a Rua dos Remédios com passada larga. De tempos a tempos alguém me gritava "BENFICA" e eu desapertava parte da camisa e exibia o emblema ao peito. Foi assim que toquei o primeiro set, com o encarnado suado ainda junto ao corpo, sentindo-me o super-homem.

Mais tarde, já em casa, revi esses minutos intrigantes. Tantas vezes que lhes perdi a conta. E é essa a crónica que partilho aqui, convosco.

Final do minuto 69, jogada de ataque do Benfica. A bola vai para o inevitável Nico. Este centra impecavelmente para o miúdo Guedes, que pára de peito e desfere um remate tosco e desenquadrado. A bola segue na direcção de Jonas, que ainda tenta o desvio, mas vinha com demasiada força para sair bem.  Vai ao lado. Jonas estava, naturalmente, muito bem posicionado para o passe, que não existiu. Murmura qualquer coisa para o Guedes.
Aos 30 segundos do minuto 70, a magia de Genionas no tal passe de calcanhar. Gasto um pouco mais a tinta do botão de rewind do meu comando. Não consigo parar de ver e rever este momento ímpar. Finalmente, deixo o jogo avançar, prometendo a mim mesmo que voltaria lá depois.
Final do minuto 72, take 2 da jogada. Nico para Guedes, que desta vez passa, e Jonas, outra vez bem posicionado, mete a bola na baliza, pelo meio de quatro jogadores do passos. O redes saiu para cobrir o ângulo de remate do Guedes, como lhe competia, e o puto passou. Como lhe competia! Jonas tem uma enorme demonstração de carinho por Guedes, nos festejos do golo, e aponta para ele, como que a dividir os louros. É muito grande, o Jonas. É enorme! E é também professor, um verdadeiro maestro. Falam muito, um com o outro, enquanto festejam. Jonas reconhece a mudança de atitude, e congratula o miúdo, como um verdadeiro pedagogo. Com toda a generosidade e sabedoria que lhe são características.

Os comentadores dizem que Rui Vitória falou por mais de uma vez com Guedes, e atribuem-lhe parte do mérito da jogada do miúdo. Eu não acredito na rábula. Talvez estivesse a combinar umas iscas à portuguesa para o dia seguinte, ou uma churrascada. Alguém que não tem o discernimento de fazer descansar os dois jogadores centrais da nossa equipa, alguém que não substitui Gaitan e Jonas a vinte minutos do fim com o jogo ganho, como devia ter feito neste jogo, e também no jogo com o Belenenses, não pode dizer nada de jeito. Foi para combinar uma almoçarada no domingo, só pode!
Volto para trás, uma vez mais, até ao take 1, aquele em que o Guedes rematou em vez de passar. Procuro a resposta para a mudança de Guedes algures nesses inquietantes minutos. Eu senti no estádio que algo de importante se tinha passado, um enredo maior do que os golos. Mas onde é que ele está? Onde está o fulcro, Arquimedes?
E é então que vejo uns segundos reveladores, que me tinham passado despercebidos da primeira vez. A seguir ao erro de juízo de Guedes, Jonas diz qualquer coisa a Guedes, enquanto ajeita o cabelo. Mas o quê, o que é que ele lhe está a dizer? Revejo as imagens pela quarta ou quinta vez quando finalmente mato a charada. E então é isto: Aparentemente, Jonas só lhe diz duas palavras: “Joga, caralho!”. Vi estes segundos mais de uma dezena de vezes depois, e leio sempre isto nos lábios do génio. Joga, caralho! E, na verdade, quero acreditar que é este o momento da catarse, é esta a frase que desbloqueia o puto e lhe purifica o jogo, de acordo com o manto que enverga. “Joga” é brilhante, porque encerra tudo o que é preciso ser dito. Rematar, naquele momento, é ego. É ansiedade, é fuçanguice, é imaturidade. É tudo menos jogar, que é o que ele tem que fazer. Jogar é, em todos os momentos, interpretar o jogo e fazer o que é certo. E, naquele momento, o que era certo era passar a porra da bola ao Jonas. A sorte sorriu-lhe e teve uma segunda oportunidade, tirada quase a papel químico. E o miúdo, dessa vez, jogou!
É muito mais inteligente dizer “joga, caralho” em vez de “passa, caralho”. Jogar serve um significado maior. Pedagógico, até. É Jonas a ensinar a Guedes o que é o jogo, e a passar o testemunho. “Joga, caralho!” é síntese só ao alcance de poucos. E, no nosso país, jogar em todos os instantes do jogo está só ao alcance de Jonas.

Tudo isto se passa na outra baliza. Daí não ter conseguido tirar logo os significados mais profundos destes momentos que descrevi e analisei. Falhou-me o pormenor. Escolhi o lado do campo pelas estatísticas do jogo de Jesus, porque marcava muitos golos na primeira parte. Já esta equipa do Vitória marca muitos golos na segunda parte. Vai passar-me muito jogo “ao lado” durante esta época. Pelo menos eu espero que sim. Significa que vamos continuar a marcar muitos golos na segunda parte, e a ganhar os jogos.

Nem tinha perdido muito tempo com isto. É o que é. Mas nessa mesma noite, estava eu na mítica Mesa de Frades, para a minha segunda dose de fados, quando tive o prazer da companhia de um amigo dos tempos de liceu e da velha Luz. Falámos sobre o jogo, e eu contei-lhe a minha frustração, de não ter visto bem a segunda parte. Ele disse-me que também lá estava. Atrás da “baliza dos golos”. "Tu não viste bem porque não estavas na baliza dos golos", disse-me o Jorge. E foi como se me tivesse dito "joga, caralho!".
“A baliza dos golos” é algo de absolutamente maravilhoso, porque me remete para um tempo bem diferente. Fez-se Luz, em vários sentidos. Reconheci a expressão de imediato, é claro. De repente, estávamos todos no antigo estádio da Luz. Putos, mais putos que o Guedes e o Semedo. Acaba a primeira parte e alguém diz “bora para a baliza dos golos”. E assim era. Todos sabíamos o que isso queria dizer. Em muitos jogos tínhamos esta liberdade de movimentos, e víamos ambas as partes com bom ângulo. Era o dobro da emoção. E só havia uma baliza dos golos em cada parte. Era a baliza para onde o Benfica atacava. Na verdade, ainda hoje é assim. Só há uma baliza em todo o mundo, e é a baliza para onde o Benfica ataca. O mundo é que está mais estático agora, obrigando-me a ficar longe dela por 45 minutos.

8 comentários:

Fátima Ribeiro disse...

Um prazer, ler este post!

mitul disse...

Foda-se, futebol romântico! Belíssimo texto!

Anónimo disse...

Excelente descrição do "joga caralho", pois esta era a frase mais usada quando jogava à bola e alguém que fosse agarrado à chincha, mais conhecido pelo "és um fuço" nós logo dizíamos, "joga caralho".

Muito bem o pormenor e pela descrição.

andré raposo disse...

Que texto enorme !

Só dizer que este sábado a baliza dos golos pode ter sido a outra, mas a baliza do GOLO foi a nossa.

Ass: sector 25

abraço

Henrique disse...

Das melhores merdas que li sobre o Glorioso nos últimos tempos. Escreve mais, caralho! :-)

Unknown disse...

Brilhante cunhadinho! *

luis disse...

Deste Glorioso texto retiro esta transmissão de nostalgia:
" O ambiente não é bem aquele que esperava. Há demasiadas crianças para pôr em prática todo o meu vernáculo de bola. À nossa volta jazem famílias inteiras, inertes nas cadeiras almofadadas. Aparentemente o conforto adormece-lhes mais o espírito do que as nádegas "

As crianças nunca foram demais. O vernáculo da bola é Universal.Aquele palavrão mais pornográfico até é pedagógico. Aprendiam com mais facilidade a exigir qualidade de jogo ou garra.
Noutros tempos era enorme a inveja dos outros quando presenciavam as romarias para as bancadas cruas de betão. aquele Povo de massa anónima reunia-se sem olhar aos níveis sociais ou culturais. Aquela gente era formada por muita gente em dificuldades económicas. Maioritariamente nunca fomos gente rica. De valores sim. Somos aqueles que lutavam pelas igualdades com vitórias no campo. As diferenças ficavam à porta. É bom não esquecer que após o 25 de Abril quem envolveu a politica desde os seus primeiros passos desportivos foi o Pintinho com o José Maria Pedroto. Actualmente é uma festa de entretimento.
A nostalgia bate mais forte ao recordar o poder passar para o 3º anel durante o jogo. Entrar, entrava sempre na porta 7 antes do apito inicial. Ali no rés do chão preferencialmente de pé na baliza de ataque.
Assisti a um bocadinho de tudo. desde lançamento de rebuçados com os festejos do Golo. Sapatinhos para o relvado e ir descalço para casa. Assim como naquele dias com mar de chapéus de chuva não conseguir ver o caralho do relvado. Atenção que quando tinha apenas um metro e meio foi assistir na primeira fila bem junto a rede a estreia do Chalana. Se não me engano foram 6 a ó contra o Atlético da minha aldeia. Em Alcântara o vernáculo sempre foi Gloriosamente evoluído e naquele dia chovia para caralho. Tenho saudades da porta 7 e dos putos do Benfica sozinhos para entrarem com alguém.

Nota: a origem da palavra caralho, parece que surgiu nas Naus e Caravelas. Era dado o nome aquele andar superior do mastro, acima das velas. Era lá para o alto que iam os castigados passar umas luas ;)

Benfica Todos Tempos

Filipe Rebelo disse...

Quero, antes de mais, agradecer todos os comentários.
Posto isto, quero assegurar que não tenho nada contra crianças. Eu adoro crianças, porque elas ainda têm todas as articulações a funcionar muito bem, incluindo as do pensamento e adaptação. O que me custa é o nível de pasteurização e liofilização avançada a que os pais as sujeitam todos os dias da sua ainda curta vida.
O menino que estava à minha frente trocou de lugar com um dos adultos da família, o que estava mais longe, porque não aguentava as nossas expressões de espanto ou desagrado. E sem vernáculo. Era mesmo pela assertividade e pelo volume! E lá foi ele, a limpar as lágrimas com a parte de trás da mão direita enquanto segurava a playstation com a esquerda.
Agora dizemos aquilo que nos apetece. Eles, os pais, que acordem. E despertem os filhos!