19:43, semáforo vermelho na Praça de Espanha. Vemos de cima, com câmara panorâmica. À esquerda da imagem, filas de carros amontoam-se uns nos outros, junto às árvores. Esperando. À direita, saem avançando devagar, depois acelerando outros carros. Contornam as curvas de passeios, levam luzes, cai a noite. Para onde irá esta gente? Dentro de 4 ou 5 horas, a Praça estará entregue a viajantes solitários, esporádicos, nocturnos. Agora não. Tudo cheio e cansado. Cada um dos humanos sentados na sua casa de rodas leva o coração e a vida, a tristeza e a esperança, fazendo pontos de embraiagem, depois seguindo em segunda, terceira, segunda outra vez, terceira, quarta. E a quinta, a necessária e urgente quinta, que os leve ao sonho, onde está?
 Olhos desfocados no horizonte de um céu que ainda tem rosa e lua a 
rebentar, luzes difusas de casas que abriram cozinhas para o mundo, 
Abílio espera pelo verde enquanto ouve o hino da Taça dos Clubes 
Campeões Europeus - chama-lhe sempre assim, detesta o novo acordo 
ortográfico e as estrangeirices. Sobe-lhe a música dos pedais às pernas,
 dos joelhos ao estômago, do peito aos olhos. O narrador anuncia: «As 
equipas estão alinhadas no relvado, o árbitro suíço está vestido de 
amarelo, o Estádio está composto. Diria um pouco mais de meia-casa. 
Jorge Fonseca, o que achas?» e o Jorge Fonseca dirá, com os pés no 
terreno, que talvez esteja menos de pouco mais de meia-casa e que houve 
uma homenagem a um antigo jogador do Benfica, devidamente premiado com 
uma medalha por parte do Presidente que «desceu até ao relvado».
 
Nada disto Abílio ouviu, perdido a focar uma marquise onde lhe parecia 
que estavam os seus pais e avós, a casa antiga que o tinha criado, a 
lareira grande com bancos dentro, sacas de batatas e pimentos vermelhos 
metidos em caixas de cartão com imagens de morangos do lado de fora. 
Vivia-se bem naquele tempo, poucos luxos é certo mas talvez houvesse uma
 dignidade entretanto desaparecida na confusão da cidade de luzes e 
marquises, semáforos, o som do motor, o táxi a debitar chamamentos com 
vozes de uma mulher a perguntar latitudes. Qual a latitude das saudades? 
 O verde apareceu, Abílio carregou no acelerador, levantou a 
embraiagem, pôs a mão na primeira e pensou que o Benfica tinha de ganhar
 aquele jogo. Ia a fazer o 11 na cabeça, perdendo-se sempre no 
lateral-esquerdo e nos médios, sem saber se era o brasileiro que tinha 
chegado se o sérvio que era muito bom, quando viu uma mão acenar-lhe. É 
um jogo curioso, o de Abílio, esse de tentar concluir pelo menos três 
factos sobre a pessoa antes de ela entrar no carro. Há anos que faz 
isto, surpreendendo-se sempre com a percentagem de acerto. Abílio 
procura adivinhar três características sobre o seu cliente antes que o 
cliente abra a porta da sua viatura: profissão, clube de futebol e 
estado civil. As pessoas têm luzes sem se aperceberem.
 Desta vez,
 porém, Abílio ia inundado de afectos e saudades. Tinha a infância toda 
no colo e um jogo do Benfica na rádio. Não fez o exercício, limitou-se a
 parar, esperar pela escolha que o cliente faz da porta a abrir - sempre
 mais interessantes os que decidem ir a seu lado em vez do refúgio dos 
lugares traseiros -, ouvir as latitudes - sempre as latitudes -, 
assentir com um gesto robótico, dizer que "sim, senhor" e seguir viagem 
por entre as ruas de Lisboa, que apesar de tudo e dos anos ainda o 
surpreendem pela variedade de becos esconsos, linhas tortas, probições 
de sinais, belezas que encontra sem aviso nem alertas. O Senhor 
Figueiredo escolheu refugiar-se, para Abílio um alivio. Podia ouvir o 
Benfica, lembrar-se do arroz de tomate da mãe e ir estando atento ao 
telemóvel não fosse a ex-mulher ligar-lhe num assomo de ternura. A 
verdade é que Abílio tinha pena de não poder ver o Benfica, de não poder
 ir ver se o refogado já estava no ponto para pedir à mãe o privilégio 
de atirar o caldo de tomate ao encontro das cebolas amolecidas, de não 
poder voltar a casa e ter uma pessoa à sua espera. Eram 12 horas por dia
 enfiado no cubículo, intervalos espaçados para um cigarro e almoço. O 
resto dividir espaço com desconhecidos, receber dinheiro, dar moedas, 
dizer "Bom dia", depois "Boa tarde", já sem chama "Boa noite". 
 
«Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo,
 golo, golo, golo, golo, golo, goooooooooooooooooooooooolo, Jo, Jo, Jo, Jo, Jo, Jooooooooooooooooooooooooooooooooonas, Benfica, 
golo, golo, golo, golo, goooooooooooooooolo, Samaris flectiu na direita, 
fintou um adversário, deixou em Salvio que cruzou para a área e Jonas 
finalizou de cima para baixo, golo, golo, golo, é goooooooooooooooolo do
 Benfica!». Foi desta forma que Abílio recebeu da rádio a bola no peito,
 esperou pela gravidade e rematou para as redes. Gritou, gritou muito, 
tudo, gritou o mundo contra os vidros dianteiros, contra os semáforos e 
luzes e prédios e praças e becos e carros, contra os Bons-dias, os 
Boas-noites e as Boas-tardes, os jogos de adivinhação sobre vidas dos 
clientes, as saudades do arroz de tomate, das ternuras da ex-mulher, dos
 insultos das pessoas, das moedas do bem e do mal, dos trocos. Ia 
passando tão perto do golo, seguindo Segunda Circular adentro, em frente
 à Luz, que sentiu ainda a maresia do cabeceamento de Jonas, o vento 
que a bola levou até à baliza, as pernas dos adeptos, os braços dos 
adeptos, o grito dos adeptos ecoando pelo Estádio. 
 Não tinha 
cachecol, agarrou-se ao pequeno galhardete que tinha agarrado ao 
retrovisor, beijou-o, soltou impropérios, esmurrou o ar tantas vezes que
 os átomos em cima do volante acabaram estatelados contra o vidro da 
frente, cantou: «BENFICA, BENFICA, BENFICA, BENFICA, BENFICA». Foi só 
depois, muito depois, 2 minutos e 43 segundos depois (eternidade do 
golo), que se lembrou do cliente que levava no carro. Um senhor 
aprumado, bigode aparado, elegante, rindo-se muito e fazendo com o punho
 direito um sinal de comunhão e felicidade. Foi o dia em que Cosme 
Damião andou pela primeira vez num táxi.
 


