A minha primeira camisola do Benfica não estava preparada para evitar o suor que os braços e o peito em chamas destilavam, enquanto eu corria por entre o musgo e as ervas ou rematava de forma perfeita para as balizas que eram pinheiros que só podiam ser defendidas por guarda-redes gigantes.
Era uma camisola quente, com uma marca que não era a oficial e o próprio símbolo parecia estar a cair, meio descosido com a águia parecendo em voo para o céu, com os olhos virados para cima, para mim. Às vezes baixava a cabeça e olhava-a nos olhos, só para ver se ela continuava no meu peito. E depois corria com a bola nos pés, com as asas que ela me dava. Na parte de trás, o meu pai coseu-lhe um número, o 10, e lembro-me de vê-lo a recortar o pano, a pintar no pano os números e, no fim, coser na camisola o orgulho do número mágico, o número do Diamantino e depois do Valdo.
Antes de sair de casa, fazia como eles faziam: puxava os calções brancos para cima, ajeitava as meias e metia a camisola para dentro. Os calções brancos brilhavam, como os do Nené, e as meias encarnadas esperavam a luta de uma tarde contra a terra e o suor, descaindo ao longo do osso sempre que uma jogada mais vibrante as fazia querer o recolhimento junto às chuteiras.
Na plateia principal - que eram os bancos do parque -, o meu Pai e o meu Avô aplaudiam as jogadas de sonho que eu fazia rente à erva; uma finta a uma pinha, um remate contra o pote de resina do pinheiro, duas ou três cabeçadas por entre os ramos de uma oliveira e o público extasiava-se, queria mais. E eu fazia-lhes a vontade, sempre com aquele ar de orgulho de levar no corpo o manto sagrado. O que eles não sabiam é que só fisicamente eu lutava por entre oliveiras e pinheiros; na cabeça, brilhava em todo o esplendor por um relvado a 150 quilómetros de distância, um relvado sem pinhas nem caruma, com adversários às listas verdes e brancas, e um estádio cheio, de sangue colorido. Aquelas grandes árvores que serviam de balizas, dentro de mim eram postes brancos com redes e um guardião à espera de uma bola difícil - era por isso que sempre que me aproximava da área adversária, e mesmo não havendo quem a defendesse, eu procurava colocar a bola no cantinho junto à resina, não fosse o imaginário guardião gigante negar-me o golo.
Pelo Benfica, terei marcado uns 345.000 golos e terei dado a marcar não menos do que duas centenas de milhar de oportunidades de golo, que às vezes eram desperdiçadas porque os meus colegas imaginários (às vezes árvores decepadas) não tinham a qualidade de remate que eu evidenciava. Fui capitão do Benfica praticamente em todos os jogos e só não o fui em circunstâncias muito especiais, como as vezes em que a braçadeira estava na lavandaria ou aquela outra - que ainda hoje recordo como um dos mais negros dias da minha vida - em que o cão decidiu brincar aos capitães da areia, vestindo a braçadeira nos dentes. Joguei, contabilizando jogos no pátio, na estrada, na rua, na cozinha, no corredor, no parque, no pinhal, na eira, na ponte, no ervado e, mais tarde e mais a sério, no pelado e no relvado, cerca de 3 milhões de vezes, quase sempre de encarnado e quase sempre com a camisola do Benfica vestida.
Porém, tempos houve, e peço desde já desculpa a todos os que seguiram a minha carreira, em que vesti de verde. Foi no tempo em que em Abrantes não havia Benfica para os mais novos e eu ingressei no Sporting da cidade. Sim, assumo a heresia. Mas quem de vós o não teria feito se, no contrato, vos oferecessem aquilo que me ofereceram - hipótese de jogar num pelado enorme, a sério, com balizas que não eram pinheiros, marcas brancas direitas no campo, pedras que não as iguais às que vivem junto às pinhas (mas igualmente dolorosas), adversários que não árvores sem cabeça e público, umas 80 ou 90 pessoas?
Se ainda não estão convencidos, digo apenas isto e espero ser declarado inocente em tribunal: no fim de cada jogo, davam-me duas sandes de queijo e um trina de laranja. I rest my case.