sexta-feira, 3 de julho de 2015

AS GLORIOSAS AVENTURAS DO JOÃO BENFIQUISTA - A primeira ida ao Estádio da Luz (Parte 1)



Não sei se o dia tinha acordado solar ou se era eu que levava dentro uma chama imensa que me iluminava o coração. À distância de todos estes anos, a memória tende a ser condimentada com pormenores de beleza - colocamos na vida passada uns pozinhos de luz aqui, pedaços de esperança ali, sorrisos por todo o lado. A vida reluzia-me naquele dia de Outubro de 1965: o meu Pai ia levar-me pela primeira vez ao Estádio da Luz.

Importa, no entanto, recuar aos anos anteriores a este, nos quais sofri e festejei à distância as agruras e os golos do Benfica. Para a minha mãe o futebol era um desporto de homens; ligava-lhe tanto como ligava aos carros, aos aviões, às máquinas novas como a televisão, ao tabaco e ao álcool: tudo matéria masculina a que dava a importância de um leve esgar de interesse. Exceptuando a rádio - acompanhava as novelas da Emissora Nacional e os noticiários - os aparelhos lá em casa pareciam-lhe estranhos seres de planetas distantes, múmias tecnológicas que a olhavam em silêncio, assustadores.

Quando o meu Pai ouvia o relato dos jogos do Sporting, com os gritos lancinantes de golo do Artur Agostinho, ela fechava-se na salinha de coser, pedalando infinitamente a Singer contra o som estridente da geringonça que gritava jogadas perigosas. Os leões corriam em Alvalade, o meu Pai chutava a atmosfera imaginando a bola nas redes e ela fazia paninhos, talegos, meias, camisolas de Inverno que talvez viessem a dar jeito a alguns jogadores quando se reformassem, que naquela altura ainda não eram pagos a peso de ouro. Apesar da insistência paternal, o Sporting não despertava em mim a loucura de adepto. Os subornos eram alguns: o tio que vinha de Elvas prometia dar-me uma bola de futebol se eu me tornasse sportinguista; o meu Pai pedia-me que gritasse os golos leoninos; o primo perguntava-me se sabia alguns nomes de jogadores e eu respondia que sim: «Eusébio, Torres, Simões, José Aug...»

- Não são esses, João! Esses são os nossos rivais. Tens é de dizer os nomes dos jogadores do Sporting!

e eu continuava a dizer na minha cabeça: «...usto, Coluna, Cavém, Cruz, Germano, Costa Pereira, Perides, Raúl Machado», não por ser do contra mas porque eram aqueles os meus heróis, os que me faziam acabar o jantar e fingir sono para ir para a cama ouvir de transístor no ouvido e lençóis e cobertores por cima as noites europeias do Benfica Glorioso.

Não há uma razão que explique racionalmente o porquê de sermos deste ou de outro clube. Somos de um determinado clube porque não poderíamos ser de mais nenhum. Somo-lo tão visceral e profundamente que a nossa existência deixaria de fazer sentido se porventura um dia nos forçassem, a máquinas de lavagem cerebral ou a choques eléctricos, a amar outro que não o nosso clube. Sou do Benfica porque o Benfica me chamou com as suas invisíveis garras de águia, me acolheu no peito, me lambeu a alma, me fez voar. Sou do Benfica porque sou do Benfica. Não há mais nada a dizer, explicar, demonstrar, argumentar sobre tal assunto. Sou do Benfica porque sim.

Perdida a batalha, o meu Pai, generoso homem, dócil ser humano, desportista e desportivista exemplar, arrumou as armas no sótão e deu largas à minha paixão, prometendo-me uma ida ao Estádio da Luz nesse glorioso dia solar (ou fazia chuva? No meu coração a luz entrava por todas as janelas). Na verdade, eu desconfio que ele também queria ir ver os bicampeões europeus, mas para não o afrontar no seu sportinguismo preferi ficar caladinho e dormir na noite anterior com o meu cachecol às riscas vermelhas e brancas feitas pela minha mãe na velha Singer que dava voltas e voltas e nunca mais parava.

Assim, nessa Abrantes rodeada de Tejo - o rio já nos levava até Lisboa -, acordei de uma noite sem sono e fui de pijama tomar o pequeno-almoço com os meus pais. O velho Chico olhava-me, comovido com a luz que irradiava de um coraçãozinho benfiquista. Disse:

- Dizem nas notícias que o Estádio da Luz desapareceu e saiu a voar pelos ares, foi fazer de Lua a outros planetas. Já não podemos ir.

Eu ri-me, senti o que sentem os filhos pelos pais que amam, uma coisa que está para além das palavras e até dos sentimentos. É mais do que amor, porque amor é uma palavra e um sentimento. O que eu sentia era orgulho se fosse possível falar do orgulho de um filho pelo Pai sem usar as palavras. Vesti-me a preceito - calções brancos, camisola vermelha, cachecol glorioso -, pus-me dentro do 2 cavalos a chamar por ele. E o resto do dia da minha ida ao Estádio da Luz conto-vos amanhã, que tenho aqui o meu filho Ricardo dentro do Datsun a chamar por mim para irmos à Catedral.

1 comentário:

Benfiquista Tripeiro disse...

"Não há uma razão que explique racionalmente o porquê de sermos deste ou de outro clube. Somos de um determinado clube porque não poderíamos ser de mais nenhum. Somo-lo tão visceral e profundamente que a nossa existência deixaria de fazer sentido se porventura um dia nos forçassem, a máquinas de lavagem cerebral ou a choques eléctricos, a amar outro que não o nosso clube. Sou do Benfica porque o Benfica me chamou com as suas invisíveis garras de águia, me acolheu no peito, me lambeu a alma, me fez voar. Sou do Benfica porque sou do Benfica. Não há mais nada a dizer, explicar, demonstrar, argumentar sobre tal assunto. Sou do Benfica porque sim."


Obrigado por isto.