domingo, 1 de abril de 2018

TAMBÉM SOU RAÚL JIMÉNEZ



Devo ter bebido o primeiro copo de vinho tinto quando tinha uns nove ou dez anos. A minha mãe levou-me a uma apanha da uva, nas vinhas de uma cooperativa vinícola, algures no meu querido Alentejo. Insistia em proporcionar-me experiências que me pudessem enriquecer e fazer perceber melhor o mundo (obrigado, mãe). Mas eu decidi improvisar, como sempre fazia, e resolvi enriquecer-me com algo diferente. Ao fim de cinco minutos de apanha, como tinha as mãos pegajosas, comecei a refilar como se não houvesse amanhã. Talvez por isso, e sem que a minha mãe visse, foi-me oferecido o meu primeiro copo de vinho tinto. Aliás, para ser honesto, e mais preciso, perguntaram-me antes se eu o queria. Para ajudar na tarefa, disseram-me. E eu respondi imediatamente que sim. Perguntaram-me ainda se já tinha bebido vinho tinto alguma vez. E eu menti imediatamente que sim. Veio de lá então um copo de plástico, que hoje imagino vermelho, a transbordar de néctar. Embora tenha detestado o primeiro golo, não quis dar parte de fraco. E assim detestei o segundo, também. E depois detestei o terceiro, o quarto, o quinto... Com tanta gente a olhar para mim, já não havia como recuar! Fui detestando como podia, com o intuito de chegar rapidamente ao fim. Eu era um puto franzino, que estava sempre doente, mas, pelos relatos da minha mãe, acho que tinha um feitio tramado de vergar. E nem foi preciso. Ao fim de pouco tempo, quando o nível do vinho baixou a metade do copo, comecei a ver as coisas de uma outra forma. O desagrado deu lugar a uma sensação de euforia e felicidade, sem par até então. Acabei mesmo por passar o resto do tempo a contar anedotas aos trabalhadores, que se riam às gargalhadas, é certo, mas do estado ébrio com que assassinava o conteúdo das piadas. Outros tempos, definitivamente.

E o Raúl, no meio disto tudo? Para mim, Raúl foi como o vinho tinto. Eu não suportava sequer ouvir o seu nome na Luz (desculpa, Raúl). Não tinha nada contra a pessoa, claro. Mas era pelo valor exagerado que nos custou o seu passe, um valor que tresandava a maroscas e favores. Porque Raúl mal tinha jogado, em Madrid. Porque não é o típico goleador. Porque não é aquele ponta de lança que esperas ver marcar muitos golos, valorizar, e vender o passe pelo dobro. Porque parece um bocado tosco e desconjuntado, quando joga. Porque Raúl é um jogador que falha aqueles golos que todos marcariam. Certo? E isso exasperava-me.
Mas Raúl também é o jogador que marca aqueles golos que mais ninguém marca. Os golos de Raúl são como os que dei no vinho. Quase sempre inesperados, mas fundamentais e decisivos. São também alegres, e têm o condão de me salvarem o dia. É sabido que, com o génio a bombar, e no 4-3-3 vigente, o mexicano é sempre suplente, por sistema. Joga cerca de vinte minutos em cada jogo. E, mesmo assim, não se queixa nem refila. Nunca. E marca. Quase sempre! Marca por nós, por todos os benfiquistas. Marca pelos que estão no estádio, e que acabaram de o insultar no último falhanço de golo evidente. E marca também pelos que estão em casa, a bradar aos céus pelo seu desposicionamento sistemático.

Aprendi a gostar de vinho por aquilo que acrescenta a uma boa refeição. Quando bem escolhido, um bom vinho melhora radicalmente um bom prato de comida. Tal como Raúl melhora radicalmente a equipa do Benfica, desde que chegou. Hoje eu já aprendi o que precisava, sobre o vinho. E sobre o Raúl também. Adoro o mexicano! E adoro-o para lá dos golos decisivos e saborosos que marca. Adoro-o para lá do golo ao Bayern. Adoro também Jiménez porque o mexicano nos representa um pouco a todos, quando entra em campo. Sabes aqueles dias em que, por uma ou outra razão, te calha ir para a baliza, mesmo que não gostes? E vais, porque queres é jogar? Porque queres é estar ali e fazer parte daquilo tudo, daquela jogatana num campo de futebol improvisado, cheio da terra onde vais esfolar os joelhos e sujar-te para lá do razoável? És puto, e sabes poucas coisas ainda. Mas sabes bem que queres estar sempre com os teus amigos, onde quer que haja uma bola. E Raúl é isto tudo. Mandou o aldrabão enfiar os milhões do chineses pelo ganancioso rectum acima, porque aquilo que quer é jogar. Quer entrar em campo com um sorriso, de orelha a orelha, sempre bem disposto, sempre a servir os colegas e a dar 300%, mesmo que acabe magoado. Quer dar sempre o máximo, chegando a expor-se corajosamente a possíveis lesões, quando salta e cabeceia a dez centímetros da trave da baliza adversária, para assistir um colega. Ou quando remata, completamente no ar, entre dois ou três adversários, com os quais choca, um décimo de segundo depois de ter rematado para o golo num ângulo impossível, ganhando um momento angular que o faz rodar perigosamente, e nos faz, a nós, rezar pela sua integridade. Ou ainda quando dá tudo para se esticar e fazer uma gloriosa assistência de letra, maravilhosa e totalmente desconjuntada, expondo-se a uma lesão tramada. E depois, no final do jogo, sou um puto, outra vez. Olho as minhas mãos esfoladas e os teus joelhos em sangue, e pergunto-me porque é que, depois disto, não resta mais nada para perguntar a mim mesmo. Estou só feliz, neste momento. Todo partido, mas feliz. E é neste sentido que posso afirmar que eu também sou Raúl Jiménez.


2 comentários:

RF disse...

É raro hoje em dia ver um jogador ir para o campo feliz e contente parabsw divertir como se fosse um miúdo a jogar futebol na rua.

Filipe Rebelo disse...

É muito raro, sim. Por essa razão, Raúl deve ser admirado e referenciado. Ele representa o Jogo como muitos de nós o vêem e sentem.