sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Confutatis, maledictis

Nunca mais volto ao Piso 1. Eu, como sou pobre, sou mais da zona Piso 3 mas ontem, porque o Benfica decidiu oferecer-me bilhetes por eu ser um belíssimo exemplar de débito directo, tive privilégios e honrarias. Fui exigente. Piso 1 e não se fala mais nisso. Tanto que passei pela porta 17 com uma garrafa de água cheia de vodka na mão (sem tampa, que o steward zela pelo bem-estar dos espectadores), galguei metros, passeI por uma porta envidraçada com letras bonitas a dizer "VIP" e cheguei à... 19. Onde estaria a 18, que era a minha? Julguei estar bêbedo, e estava, e voltei atrás. Não, confirmava-se, antes da 19, só a VIP e antes a 17. Como não sou parvo, embora pareça, juntei os cordelinhos na cabeça e constatei, qual génio, que eu era VIP. As coisas que fazem de nós.
Fui muito bem recebido, vi o José Augusto, vi gente ilustre e sentei-me. A cadeira era aquecida e almofadada, atrás de mim ginásios luxuriantes com vista para o relvado, gente bonita, limpa, asseada, com o cabelo arranjado, o próprio café tinha outro aspecto, as coisas brilhavam mais. Onde estariam os benfiquistas?
Como fui sozinho à bola, não pude compartilhar a experiência esóterica que me estava a acontecer mas pude, por outro lado, observar com mais atenção tudo aquilo: um luxo. E enquanto a vodka ia descendo na garrafa e o Sidnei lembrava-me as saudades do David Luiz, procurava por sinais de benfiquismo. Em vão. Sentados, calados, ensimesmados, engravatados, aqueles adeptos pareciam bonecos postos ali para, qual José de Alvalade, fazerem o efeito "estádio cheio". Cheguei a passar um pionés na nuca do boneco à minha frente e ele saiu em balão "pfiiiiiiiiiiiiiii" pelo ar. As coisas que o Benfica faz à gente.
Lá em baixo, o Salvio parecia o Gaitán e o Jara não parecia o Saviola. O Aimar parecia o Menezes e o Coentrão parecia o Coentrão.
No intervalo, experimentei o urinol feérico iluminado da casa-de-banho VIP e assisti a um engravatado lavar as mãos como eu nunca tinha visto. O senhor passava água, depois produto, secava as mãos, voltava a passar água, depois produto, depois secava as mãos. Fez isto três vezes. Findo o processo, ajeitou a gravata, passou a mão brilhantemente asseada pela melena grisalha e saiu pela porta. Eu olhava-me ao espelho, sem saber se devia ir ver a segunda parte ou partir a cabeça contra o vidro. Não estou, é óbvio, habituado a estas coisas.
Onde estaria o magote de gente em fila pirilau atrás dos urinóis; que fizeram deles? Que saudades dos lavatórios sujos e sem espelhos, dos pais agarrados aos filhos à espera atrás de uma porta enquanto, na sanita, benfiquistas se peidam e gritam coisas obscenas e dizem mal do árbitro. Saudades dos sotaques na casa-de-banho, gente do Minho, do Alentejo, "da" França, gente gorda, cara ruborescida do vinho. Até o mijo me soube pior sem aquela pressão adicional de ter de executar rapidamente para dar, democraticamente, lugar a outro. Tudo tão fácil, tão certinho, tão inquietantemente lúcido e civilizado. A custo, voltei ao meu lugar.
Jogo melhorzinho, mais Benfica até que... GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO! Levanto-me, salto, grito, GOLO, CARALHO!, procuro alguém para abraçar ou, ao menos, olhar daquela forma cúmplice que só o futebol consegue dar entre perfeitos desconhecidos. Mas nada! Num raio de 5 metros, os 30 bonecos sentados batem palmas, com as mãozinhas delicadas umas contra as outras, num gesto de donzelas românticas, e eu a olhá-los e eles a rirem para mim, quase envergonhados. Senti-me o Tom Hulce, no "Amadeus", no final daquele riso monumental, em que o riso histérico se torna em soluços como que a perguntar, a pedir a absolvição de quem ouve e vê. Ter-me-ia dado jeito um Kappelmeister Bonno, para acompanhar a minha sinfonia de riso.
Volto a afundar-me na cadeira - dá sono aquela cadeira almofadada - e bebo o último trago de vodka. Bola no poste, entra não entra, Cardozo. Gooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo!!!!! Foda-se, vamos lá, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica!!!
Já não me volto para trás, não vale a pena, vejo o Roberto pensar que está no Saragoça e apito final. Saio rapidamente para junto dos meus e só quando chego ao túnel é que me sinto em casa, encostado contra milhares de benfiquistas, a passo de caracol. A procissão faz-me feliz. E uma certeza: nunca mais volto a sentar o meu cu numa cadeira do Piso 1.


13 comentários:

M disse...

muito bom, ja passei pelo mesmo, 'tou contigo!!!

foste para lugares com categoria...MM.

:)

John Billy #37 disse...

Está excelente :))))

jose garcia disse...

eh eh eh :)

Mr. Shankly disse...

Muito, muito bom! Já passei por isso, com a agravante de ter lagartos por perto que, em plena catedral, não se inibiam de torcer pelo Milan/Lyon/Schalke, etc.

Viriato de Viseu disse...

Excelente prosa...li com prazer !!!

JNF disse...

Já me aconteceu o mesmo. Quando toca o hino do clube nem se levantam, nada, é como se não fosse com eles. Nem vi cachecóis. Que tristeza, parece que foram à ópera.

JD disse...

Muito bom... hehehe

:)

http://centrodejogo.blogspot.com/

Hugo disse...

Com os novos estádios,muita gente começou a ir ao futebol como se estivesse na ópera.
Uma tristeza

John Billy #37 disse...

http://www.youtube.com/watch?v=RvPZBRXWu7k

Ricardo, tens que ver este vídeo. Está quase tão bem como o teu post :)))

Hattori Hanzo disse...

Ricardo, o que tu estás a contar é um pesadelo. Como é que conseguiste sobreviver a isso?

Ricardo disse...

John, muito bom!! O coitado do Affelay só quer sair dali e jogar. O inglês dos espanhóis é uma coisa que assusta...

Hattori, atribuo ao vodka a minha salvação. Sóbrio, aquilo teria tido repercussões graves no meu lobo temporal.

editor69 disse...

Também fui uma vez para aí...com convite...num jogo para a taça...o tal jogo do golo do Simão já nos finalmente que nos remeteu para os penaltis...que ganhámos...e só estavam duas pessoas vivas na bancada...eu...e uma tia lagarta de casaco de peles que esteve o jogo todo em nossa casa a gritar impropérios e a chamar FDP...sem que ninguem lhe tenha dito nada...até que eu explodi no final a gritar lhe com os dedos espetados na cara...
"in your face biatchhhhhhh"...
e pronto...tb não quero repetir.

Diego Armés disse...

Já vivi experiência semelhante, mas ia acompanhado. Tivemos direito a buffet, comi polvo à lagareiro como se fosse a primeira vez e última vez na vida que o fizesse. E até tive direito a (muito) whisky de 12 anos. Ganhámos um a zero e não vi o golo. Foi aos 52 minutos e eu ainda estava de roda do polvo, não dei pelo reinício do jogo. Naqueles lugares senti aquilo que deviam sentir os imperadores no Coliseu a olhar para gladiadores e leões, preocupados apenas em rodar o polegar, sem se emocionarem. Não desejo disto a ninguém.