1. Não tenho quaisquer dúvidas de que, à luz do Benfica do século XXI, o termo “pragmático” será seguramente o rótulo mais lisonjeiro com que a actual corrente “encarnada” brindará os vulgos “abutres”, “garotões” ou “vale azevedistas”. Algo que, à luz das respectivas práticas e valores defendidos, orgulha-me particularmente.
2. A volatilidade dos adeptos encontra-se, actualmente, desfocada do seu verdadeiro centro e propósito: ao sabor da bola que entra ou sai, de aquisições ou renovações de produtos comerciais, de uma cegueira e castração seguidistas que redundam num benfiquismo artificial, corporativo, comodista, bacoco: em suma, morto e enterrado. E todas as pré-épocas e títulos do mundo não alterarão esta realidade.
3. O Benfica: de liberdade, espírito crítico, discussão, compromisso, sentimento… já não lá está. Ficou gravemente ferido com a destruição do antigo (e verdadeiro) Estádio da Luz, tendo entretanto perecido a sucessivas estocadas perpetradas sempre pelos mesmos: os seus. Seja na forma de uma direcção que as efectiva, seja na forma de adeptos que não só o permitem, mas inclusive aplaudem-nas.
4. Porque o mal sempre floresceu perante a fraqueza ou apatia do bem. Porque, se não és parte da solução, és parte do problema.
5. Claro que existirão sempre por aí umas quantas ovelhas tresmalhadas. A teimar pensar pela sua própria cabeça. A desconstruir práticas e propaganda. A repor a verdade acerca da verdadeira essência do benfiquismo: porque, essas sim, não têm memória fraca, conhecedoras que são do Benfica em toda a sua gloriosa história (e não somente do seu período mais negro, com o qual os mesmos habilidosos de sempre procuram amedrontar os sócios, única e exclusivamente tendo em vista perpetuarem-se no poder).
6. Gente que teima em recordar e suspirar por tempos cada vez mais idos, cada vez mais apagados da memória e da alma colectiva. Em suma: a pregar aos peixes.
7. Como João Santos, para quem, a ideia de destruir o Estádio da Luz, seria o equivalente a destruir o Partenon de Atenas, o Coliseu de Roma ou as Pirâmides do Egipto. De que nos valeu o testemunho de um ex-presidente cujo currículo conta, entre outros feitos, com 2 finais na Taça dos Campeões Europeus (a verdadeira competição europeia do clube) e um combate incessante e notável à podridão que já então assolava o futebol nacional?
8. De nada. Quem de direito sabia exactamente ao que vinha. E nem sequer foi necessário um passado relevante de benfiquismo, um carisma absorvente ou uma argumentação distinta: bastou dinheiro, as promessas estafadas de sempre, amedrontar os adeptos com o discurso do “ou eu ou o caos” e a dose certa de falta de vergonha que, por norma, os caracteriza.
9. Independentemente das beneficiações que Wembley ou Maracanã mereceram, era agora imperativo nacional destruir o maior património desportivo e sentimental de parte significativa de uma população e país: pertença de um clube, note-se a contradição, supostamente falido e à beira do fim. Empurrou-se tal desígnio pela garganta abaixo até o barro colar à parede e o lendário Estádio da Luz, edificado pelas mãos dos seus e integralmente pago aquando da sua inauguração, desapareceu para todo o sempre.
10. Era então tempo de dar lugar ao crédito, ao endividamento galopante, de avançar desalmadamente (entenda-se, em força e sem alma) para a primeira de muitas obras de cimento e betão: e sem a qual, não tenho dúvidas, LFV nunca sequer teria considerado candidatar-se ao cargo. Exemplo prático da aplicação do princípio do lucro pessoal. Da teia de relações alternativas. Do conluio interpares com vista a eliminar as alternativas que verdadeiramente deveriam interessar, enquanto símbolo de vitalidade e de defesa dos superiores interesses do clube.
11. Quando os padrões tidos para concorrer e desempenhar um cargo desta natureza e dimensão atingem tal grau de perversidade; quando os “notáveis” (quais “D. Sebastiões”), ao invés de combatê-la, integram-na; quando uma instituição se transforma numa massa seguidista que segue acriticamente ao som do medo ou da “promessa da semana”… deixo à consideração de cada um o verdadeiro grau de grandeza e de futuro dessa mesma instituição.
12. Uns verão nessa realidade um sinal inequívoco: não de apoio a um qualquer boneco da praça, mas de estabilidade, coesão, força – enquanto sinal mais óbvio da mais significativa das vitórias após tão conturbado período. Pessoalmente, apenas vislumbro estagnação, favorecimentos mútuos, desonestidade intelectual – toda uma mixórdia de conjugações que constituem prova cabal do inexorável definhamento dos mais elementares princípios que sempre nortearam o clube e os seus.
13. Foi assim que o Benfica entrou no século XXI. Foi desta forma que o actual paradigma teve o seu início: da ideia habilidosa de progresso à sua crescente e palpável desumanização. Quantidades intermináveis de tijolo, cimento e betão construídos sobre o cemitério de princípios e valores no qual outrora assentaram os alicerces do que verdadeiramente conta: a essência da alma benfiquisma.
14. Aqui e ali, ainda vou acompanhando o Benfica. Satisfeito por saber que ainda vai aportando alegria a tantos dela necessitados. Contudo, acabo por fazê-lo invariavelmente com indisfarçável desencanto: como o da óptica de um progenitor que viu um dos seus transformar-se em algo que estaria longe das suas intenções iniciais, não lhe suscitando particular orgulho. De quem sabe que, entre o que foi e o aquilo em que se tornou, muito de bom foi perdido.
15. Ciente que estou de que somente um significativo (e inevitável) trambolhão o fará acertar o passo. Uma válida aprendizagem somente passível de ser adquirida na adversidade: mãe do conhecimento da vida. Nos presentes termos, quiçá passível de ser administrada por terceiros, por aqueles que lhe querem pior – tal a sobranceria, cegueira e conspurcação que assola todos quantos dele deveriam cuidar.
16. Ou talvez seja somente necessário dar tempo ao tempo, aplicando-lhe a mesma lógica de leis como a da gravidade. Onde tudo o que sobe, tem de descer. De que é exemplo um passivo gigantesco, histórico e irresponsável. De que é exemplo a curiosidade factual em como, com vista a alcançar os mesmos saldos maquilhados e tangencialmente positivos de sempre, vai sendo necessário, a cada ano que passa, cada vez mais, mais, mais… Mesmo contando com toda a parafernália de acordos, transferências e lucros tão propagandeados.
17. Mais, mais, mais… Como aquele que, não sendo hábil nadador, vai dando aos braços o melhor que pode e sabe… mas que, invariavelmente, não sai praticamente do mesmo sítio. O tempo vai passando. As suas reservas vão diminuindo. Sem o devido auxílio, irá invariavelmente afundar-se.
18. Ano após ano: oportunidades irremediavelmente perdidas. Essas, já não voltam mais. E quando o filão se esgotar? O que restará para proteger? Quem ficará para apanhar os cacos e fazer deles o que seja? Que será de todos aqueles que acreditaram? Que depositaram as respectivas carreiras, o destino das famílias, o seu dinheiro suado e a boa-fé inerente a um coração que se abriu à crença na decência humana?
19. Um dia, muitos compreenderão, em toda a sua extensão, a distância que separa o genuíno sacrifício pessoal do mais puro egoísmo. Do bacoco culto de personalidade. Da lucrativa desonestidade intelectual. Da irresponsável e inenarrável política “agregadora”. Do atestado estatutário de ignorância passado àqueles que, ano após ano, os louvam.
20. Até lá, venha mais um canal propagandístico directivo: desta feita, na forma de rádio. Venham mais jogadores e transacções milionárias. Mais betão e cimento onde houver pinga de solo virgem. Mais acordos com nações desrespeitadoras dos mais elementares direitos humanos. Mais bajuladores. Mais vendidos. Mais robôs. Mais copinhos de leite. Mais banha da cobra. Mais areia para os olhos. Mais, mais, mais… que é disso que este povo gosta.
21. Que enquanto a chibata vai e vem, folgam as costas. Pelo menos, até ao dia em que a factura chegue – não a que é para ir sendo gerida, mas a que terá irremediavelmente de ser paga (assim o cinto aperte verdadeiramente e esta bandalheira complacente cesse de uma vez por todas). E tudo aquilo em que se empanturraram não sirva senão para lhes provocar uma indigestão. Não será como a que teve início na segunda metade dos anos 90. Será pior: muito pior. E a troco de quê verdadeiramente?
22. O Benfica está a perder: não para o FCP ou para o SCP, mas contra si mesmo. Está a perder para o egoísmo pessoal. Para o culto da personalidade. Para a mediocridade: por deixar-se manietar por tão pouco e, assim, recusar aspirar ao melhor de si mesmo. O Benfica está a perder… e por muitos. Resta saber se ainda tem o que é preciso para dar a volta ao resultado.
RedMist