quarta-feira, 26 de julho de 2017
Simão, o botão ON do Benfica
Simão Sabrosa. Dizemos este nome em voz alta e o espírito glorioso voa directamente para o seu pé direito amanteigado, para a sua chuteira feita de queijo da serra. Era um pontapé em colher que arredondava as arestas do jogo. Em remate aveludado, a bola seguia para o golo largando no ar pozinhos de açúcar, deixava nas redes o creme de um pastel de nata a cair lento para o relvado.
Dizemos o nome Simão Sabrosa, um nome que evoca dentro de nós a ressurreição do Benfica. O homem que, de bola no pé, lá em baixo, no relvado, lentamente nos foi acordando do nosso autismo cheio de tristeza e mágoa. Foi assim: adormecidos desde 95, íamos ver o Benfica porque não podíamos abandonar o Benfica. Seguíamos, zombies, pelas estradas do país; mortos-vivos, bebíamos nas barracas, em frente a fogareiros e repastos; falávamos uns com os outros, fingíamos que ainda era a mesma coisa. Mas não era. Foram anos, demasiados anos, a ver o Benfica definhar. A ser outra coisa. Eram mau jogadores, eram maus treinadores, maus presidentes, mas era mais do que isso: era um Benfica envergonhado de ser Benfica. Um Benfica que se tinha esquecido de ser Benfica.
Desde 1995, o nosso ritual religioso: íamos ao estádio rezar preces, ter esperanças, cumprir o dever benfiquista. O João Pinto espalhava génio sem piano a acompanhar. O maravilhoso Michel, o irreverente Karel, a doce ternura de uma quase-vitória. Apresentávamo-nos na Catedral, cumpríamos. Tínhamos o amor - temos sempre o amor - mas faltava-nos a loucura de uma paixão feita de aventuras, viagens e sonhos. Não tínhamos sonhos, tudo era assim-assim. Os anos foram passando e nada. Comprávamos A Bola à espera de um milagre. Vieram novos Presidentes, veio o ano 2000, novos treinadores, novas promessas. Mas nada. Continuava tudo assim-assim. Assim sem fim. No relvado, nos tribunais, nas rulotes e nos céus, o Benfica chorava. Nos novos empreiteiros do Benfica, nas obras, nas estruturas, o Benfica chorava.
Até que alguém no Terceiro Anel acordou o benfiquista do lado:
"Olha lá, vê lá se eu estou a delirar. Parece-me que há ali Benfica"
O Simão corria por uma ala. Fazia um compasso de espera, olhava o adversário, com a parte de fora da chuteira cheia de açúcar metia para dentro. Rematava para um golo que era a alma toda do Benfica. Depois marcou outro igual. Depois, em vez de ir para dentro, foi para fora e cruzou. Depois marcou livres, marcou cantos, cabeceou, rematou de esquerda, fez tabelinhas, abraçou os jogadores, pediu-lhes a glória porque "isto é o Benfica!".
Quando demos por isso, já o Simão era o motor que fez vibrar 2005. O botão ON de um grito que esperava desde 94 dentro das malhas dos nossos cachecóis, das camisolas dentro de gavetas, das bandeiras que guardamos na bagageira, dos bibelôs, das canecas, das mantas do Benfica que aquecem os Invernos. Simão Sabrosa carregou no interruptor, abriu as águas de uma barragem sem força para aguentar 11 anos de pressão desesperada sobre o betão. O povo benfiquista saiu enlouquecido às ruas. Finalmente, o Benfica espalhava-se pela alegria.
2005 foi o grito que libertou o Benfica para a sua magia de Benfica e mostrou que um pé cheio de açúcar, em colher, "nesta curva tão terna e lancinante" pode fazer o milagre de ressuscitar um clube. O Simão foi o botão ON da electricidade mística.
Etiquetas:
Memória e nostalgia,
Simão Sabrosa
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6 comentários:
Foi, foi sim, foi tudo isso. Simão, um verdadeiro capitão, nele nós confiávamos. A um jogador do Benfica pedimos sempre um bocadinho mais além do que podem dar. A um capitão exigimos que dê um bocadinho mais por cada um dos outros em campo e o Simão nunca nos falhou na entrega e no sofrimento.
Tal como o capitão João Pinto, tão a propósito neste artigo, têm para nós adeptos, um lugar na nossa história de vida e na história no clube.
Grande texto !
Nunca esqueçamos estes anos, demasiado eternos.
Parabéns.
Partilho das mesmas palavras de O Cabinda.
Simão foi um digno sucessor de JVP.
Levou muitas vezes a equipa às costas.
Um dos jogadores mais importantes que passou no Benfica desde a passagem do milénio, a par do Jonas considero-o o melhor jogador que passou pelo nosso clube neste período de tempo, pela qualidade que tinha e por tudo o que dava pelo clube (mesmo não sendo ele benfiquista de gema) tanto é que ainda hoje é odiado pela maioria dos lagartos.
Sem dúvida que teve um contributo muito grande no reerguer do nosso clube e espero que isso não seja nunca esquecido, tal como eu não esquecerei 2005 e aquela equipa que mesmo não sendo a mais talentosa deu-me e a muitos outros milhões uma alegria imensa: Quim, Miguel, Ricardo Rocha, Luisão, Dos Santos, Petit, Manuel Fernandes, Geovanni, Nuno Assis, Simãozinho e Nuno Gomes, sem esquecer o contributo dado pelo enorme Mantorras, Moreira, Fyssas e até mesmo e há que dizer a verdade do próprio João Pereira, que era um dos nossos e muitas vezes o vi a jogar e bem quer a lateral quer a extremo direito.
Tony Montana
1. Façamos de conta, por 4 ou 5 parágrafos, que este trolaró aportará verdadeiramente alguma coisa de significativo. Que as suas repercussões irão muito além dos clientes habituais que aqui procuram fugir ao tédio. Ou dos “senadores desportivos” que, sem pagar tusco, surripiam ideias alheias a fim de assim perpetuarem estatutos e regalias. Perante tão nobre exemplo que por todos os lados nos rodeia, proponho que, qual hamster, mantenhamos a roda a girar e façamos, por momentos, todos de conta.
2. Façamos de conta que o clube, de dia para dia, não fica mais endividado: e, consequentemente, mais pobre. Que muito do que possui não é verdadeiramente seu: na medida em que nada está totalmente saldado junto de quem lhe emprestou o dinheiro de que nunca dispôs para a vida que faz. Que todas as épocas, sem excepção, assiste-se a uma enxurrada de entradas, à qual sucede, consequentemente, uma varridela de saídas. Que os adeptos não perdem o foco da gravidade da situação à 1.ª vitória, contratação ou acto propagandístico: munidos que estão de fortes laços de identidade que comungam entre si, bem como das necessárias defesas intelectuais para fazer face aos sobreexplorados “maquilhadores” da realidade.
3. Façamos de conta, por momentos, de que a estrutura, mais do que de um profissionalismo à prova de macumbas, é ética. De bem. Que zelam por interesses em muito superiores aos de qualquer um que o sirva. Que serve, ao invés de servir-se. Que dispõe e procura captar os melhores, repelindo jogos de poder, a gestão calculista, a paz podre - inviabilizadoras de quaisquer aspirações superiores. Que gere o património humano e material “com pinças”. Que é aberta, tolerante, plural e disponível para abraçar visões contrárias à sua. Que não entregará a quem lhe suceder um “monstro” descaracterizado, hipotecado e insustentável.
4. O triste não é isto ser sobre o Benfica. Numa era de tão apregoadas “riquezas”, o triste é podermos substituir o termo “Benfica” por um qualquer clube, instituição ou nação a gosto e perceber-se que o cenário não diferirá por aí além. Mesmo à luz da distância e desconfiança que me são inerentes, resquícios involuntários de ingenuidade permitem-me, ainda hoje, surpreender-me com a desfaçatez no trato do bem maior: de algo superior, sagrado, que há muito existe, que o acolheu, para agora ser violado por aqueles que juraram dele cuidar. Teremos nós a noção da forma como, na terra ou no céu, seremos um dia julgados?
5. Nada do aqui possa escrever resolverá o que for. Ajuda, no entanto, a atenuar a dor. A melhor suportá-la. A esboçar “o sorriso do doente terminal”: já sem réstia de esperança, mas entretanto conformado com o seu destino.
Essa finalização com O'Neill foi à Mestre Jonas! ;)
Se eu um dia quiser mostrar a um amigo ou colega estrangeiro o que é o Benfica e o Benfiquismo, mostro-lhe os teus textos.
Só descanso com o hexa de 2019.
Carregaaaaaa!
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