sábado, 17 de novembro de 2018

O Hat-trick de Rui Águas - dois gloriosos golos e um extraordinário quase-golo



1988, segunda parte das meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Eu, o meu Pai e mais 129.998 benfiquistas na Luz sob o mote do Presidente João Santos - "Um benfiquista, uma bandeira" - cantamos "Benfica, Benfica, Benfica" a levar o Glorioso até à final de Estugarda. Mats Magnusson de costas faz um passe a isolar Rui Águas. O romeno do Steaua ainda consegue recuperar a bola, mas logo o filho do Bicampeão Europeu a rouba e segue rápido para a baliza, meio descaído na esquerda. Entra na área.

(O meu Pai mete a mão na minha perna e flecte os joelhos à espera do golo, eu meto a mão na perna do meu Pai e flicto os joelhos a desejar o golo, as pernas e as mãos cruzam-se e os joelhos flectem-se a ordenar o golo, os filhos metem todos as mãos nas pernas dos pais, os pais metem todos as mãos nas pernas dos filhos, todos os joelhos do mundo flectidos com saudades do golo. Tudo em tensão: mãos, pernas, joelhos. 130.000 pais e filhos, amigos, padrinhos, vizinhos e estranhos agarram-se às pernas uns dos outros numa corrente humana de pernas, joelhos e mãos a fazer do Estádio da Luz um absurdo fenómeno de flexões colectivas e o coração aos saltos, em místicas diástoles em gloriosas sístoles, pulsando desejos infantis: "faz golo, faz golo, faz golo, faz golo, faz golo, faz golo")

Rui Águas dá um toque ligeiro para a frente (amacia-a, prepara-a, acalma-a). Quando lhe aparece um adversário ao lado, mete-lhe a bola por entre as pernas, e, já sem espaço, salta - salta como um cavalinho, como se fosse o último salto de sempre - para poder rematar. Um lance à Jonas (ou é Jonas que tem coisas de Rui Águas?). Remata e a bola é defendida no chão por Liliac. Uma jogada transcendental que começou com Silvino e o seu equipamento verde a colocarem a bola em Álvaro que levantou na esquerda para a cabeça de Pacheco que, junto à linha, cabeceou para Magnusson que, de costas, meteu em Rui Águas e o resto é História. Um extraordinário quase-golo.

(Por todas as casas e cafés do país, por todo o mundo, os joelhos flectidos, as mãos nas pernas, a saudade do golo esvaem-se em quase-golo e os corações benfiquistas voltam à nervoseira habitual. Tudo sempre à espera de mais um golo. Do terceiro golo em viagem para Estugarda.)

A bola distancia-se da baliza adversária, segue para os romenos. Já fora do plano das câmaras, Rui Águas, longe da bola e no meio dos centrais romenos, frustrado pelo extraordinário quase-golo, automotiva-se olhando o Estádio da Luz - "Um Benfiquista, uma bandeira" - e, em pleno relvado, começa a sonhar com os dois golos que já tinha marcado na primeira parte.

(GOLO GLORIOSO NÚMERO 1 - Aos 25 minutos, canto para o Benfica. Pacheco trata da ocorrência. Como Águia Vitória, a bola voa por cima do relvado. Entra na área. Mozer, armado em Mozart, já tem tudo na cabeça e desvia para o segundo poste. A bola parece meio perdida, vai a sair do perigo. Mas não, há Rui Águas e a sua disponibilidade mítica para o salto-peixinho. O goleador anteviu, reflectiu, dispôs-se ao chão. Cabeceou não só para o lado contrário do guarda-redes como ainda lhe deu efeito para cima - poucos jogadores no mundo seriam capazes desta loucura: talento, técnica e uns pozinhos de despero. A redonda entra no topo da baliza, abana as redes e depois é o caos, o Estádio entrou em erupção e a lava caiu quente a queimar o relvado. Lembro -me de ser atirado com os meus 6 anos para 7 ou 8 filas abaixo. "Foi você que perdeu o seu filho num golo do Benfica?"

GLORIOSO GOLO NÚMERO 2 - Aos 33 minutos, Mozer (outra vez doidão por aquilo que hoje se definiria como o "movimento ofensivo"), segue meio-campo romeno adentro, faz passe para Rui Águas, que sofre falta. Livre perigoso, sobretudo se na nossa equipa tivermos um Diamante chamado Diamantino. O capitão não marca o livre de forma normal, ele faz diferente. Ele faz diferente: amanteiga a bola, marca um livre como se passasse manteiga por pão quente. Ela segue tão amanteigada por cima dos romenos só para encontrar a cabeça de Rui Águas que, em jeito perfeito como lindíssimo cabeçeador que sempre foi (um dos melhores da História do Futebol), a desvia, a encaminha, a ensina, a dirige para dentro das redes. Rui Águas é abraçado efusivamente, não notando que, nesta altura, na maluqueira dos 130.000, eu já tinha sido atirado para dentro da toalha branca do Eusébio. "Foi Você que encontrou o seu filho num golo do Benfica dentro da toalha do Eusébio?")

Rui Águas pensa em José Águas, o Pai. O bicampeão europeu homenageado pelo filho com a melhor forma que um filho pode homenagear o Pai: repetindo-lhe os feitos. 20 anos depois, o Benfica estava outra vez numa final da Taça dos Clubes Campeões Europeus.

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