sexta-feira, 7 de março de 2014

Aquele abraço do golo


Quando o Simão recebe a bola no meio, a ajeita com um afago e remata para a baliza de Reina, a sala ficou por uns momentos parada, comigo, o meu Pai e a Joplin - a cadela - todos no ar à espera do golo. 

Se pudéssemos voltar a esse momento e o congelássemos em pause, notaríamos os nossos joelhos flectidos, as bocas num princípio de entoação e os braços a crescerem para o tecto. A cadela em salto do sofá para o chão, apanhada a meio da viagem, em voo, as patinhas da frente esticadas, o pêlo todo para trás e as orelhas distorcidas. Na televisão, ver-se-ia a bola na zona do penálti, pelo ar e Reina num gesto horizontal de desespero. 

Atente-se nos copos de cerveja em diagonal, gotas de líquido paradas na atmosfera, pratos de amendoins oblíquos e ervilhas de salada russa pulando acima da linha da mesa, tapando metade do ecrã entre o poste esquerdo e a cabeça de um defesa do Liverpool. O fumo dos cigarros verticalíssimo e também em ondas, congelado no tempo como uma pintura abstracta - com detalhe, ainda é possível ver figuras imaginárias que o fumo faz. Os cabelos do meu Pai soltos e para trás e a minha mão num gesto de movimento que faz desfocá-la. 

Como se estivéssemos empurrando a bola para o golo, há dois pés - um do meu Pai, outro meu - que a chutam no ar por debaixo da camilha e a cadela salta para o cabeceamento oportuno. Vêem-se ainda, se bem observado, os nossos braços em trânsito um para o outro, como se o golo fosse apenas a desculpa para um abraço. 

Não há forma possível de voltar a esse lugar. Ainda o mundo nos não permite a congelação em arca frigorífica dos lugares mágicos, junto aos hamburgueres e bifes de peru. Talvez um dia alguém muito mais novo que nós - porque nascido num mundo mais velho que este - invente a propriedade essencial com que se constroem as máquinas de refrigeração dos segundos antes do golo. Por ora, e sem tecnologias adequadas, coloquemos o dedo no play e vejamos o que acontece.

Explode a bola nas redes! Caem amendoins, pedaços de chouriço, o pão voa na direcção da lareira, todas as cervejas inundam a mesa e, como cascata, vão descendo numa visão surreal de quotidiano mal explicado. O golo é cantado com mil gargantas dentro de duas, eu e o meu Pai abraçamo-nos, a cadela assusta-se e foge para debaixo do móvel. Na televisão, os jogadores do Benfica vão de cinzento em direcção a uma câmara. Até Beto e seu cabelo amarelo faz parte da trupe. 

Nada disto vimos, envoltos num abraço milenar povoado de sonhos e alegria. Quando mais tarde virarmos os olhos para o ecrã, já o Liverpool ganhou um fora na direita ofensiva. Mas nada disso conta para esta história. Nada importa que não seja já sabido - Miccoli faria mais tarde, bem mais tarde, uma bicicleta que o faria correr que nem um louco para os olhos do próprio Pai, no meio do carrossel benfiquista de Anfield Road.



5 comentários:

Diogo disse...

Foi nesse dia em que o meu Pai sportinguista que não liga muito a futebol, festejou o único golo que lhe vi festejar na vida com um salto e um grito de golo!

Anónimo disse...

Esse foi um belíssimo momento, mas não consigo desviar a atenção pelo que se passou em Fátima. Lembram-se da jogada do Fernando Gomes?
Atentem ao que se vai passar nos próximos dias...

luis disse...

"Miccoli faria mais tarde, bem mais tarde, uma bicicleta que o faria correr que nem um louco para os olhos do próprio Pai, no meio do carrossel benfiquista de Anfield Road"

O que comentar depois disto ;)
Uma bicicleta e tudo. A roda do nosso emblema, as asas da tua poesia .
Vivas ao nosso Benfes, do B T T

dosul disse...

Tu em casa, eu no estádio com o meu pai, que pela primeira vez me acompanhou nestas aventuras de ir ver o Benfica fora depois de muitas vezes me ter levado ao estádio da luz quando era miudo.

No momento em que o Simão chuta, parece que tudo se passa mais devagar, e quando finalmente a bola entra, o tempo literalmente pára. olho p o meu pai, ele, sem palavras olha de volta, decimos de segundo depois um abraço e um grito : "GOOOOOOOLOOOOOOOOO"

Inesquecível, único, mágico.

Obrigado pai.

Renato Rodrigues disse...

Reparem na inteligência do Nuno Gomes... Sprintou para confundir a defesa e abrir espaço para o Simão. Ele sabia que o Simão com a bola controlada descaído sobre a esquerda era um perigo