quarta-feira, 4 de maio de 2016

JONAS E O RESGATE DA VEROSIMILHANÇA DO HERÓI

Tenho a sorte de ter um pai cinéfilo. Durante a minha adolescência, absorvi centenas de filmes, e aprendi a ver o cinema como arte, e não apenas como uma história em imagens móveis, interpretada por actores. Papei os clássicos todos que pude no grande ecrã, e revi-os, vezes sem conta, em cassetes Beta, no meu velho leitor SONY. Vezes sem conta aos fins de semana, até ter idade suficiente para me ser dada a liberdade de ligar o aparelho e ver filmes a qualquer hora. Daí em diante, a obsessão passou a ser diária. Os americanos, os russos, os franceses, os alemães... e os italianos, claro.
Sempre tive um carinho especial pelos italianos. E, uma vez mais, a sorte de ter um pai intelectualmente libertador, que me deixava ver tudo. Adorava (e adoro) Fellini, Scola, P.P. Pasolini, Rossellini, sei lá, adoro todos. Adorava-os a todos e bebia cada cena como se a vida se encerrasse completamente naquele momento.

Nesta segunda feira passada, no estádio da Luz, assisti a uma primeira parte de um Benfica com apenas três titulares habituais. Havia alguma desconexão, uma natural ausência de rotinas. O nosso jogo estava cansado, desbotado, tristonho, como um filme mau, ao qual faltam muitos fotogramas, e que já está muito estragado. O menino sem energia. Carcela na esquerda, quando, na verdade, joga bem melhor na direita, quando procura o espaço interior. Um Sálvio ainda em pré época, com uma hipertrofia muscular, preventiva de lesões, é certo, mas que lhe tira o rasgo e a elasticidade toda. Um Sílvio esforçado mas com muita pouca rodagem também. Samaris a errar passes. Luisão ao lado de um novo (e magistral) companheiro no eixo da defesa. Um menino espanhol incrível, a fazer lembrar um certo brasileiro de boa memória. Um Raul esforçado mas sozinho, secundado por Talisca na posição que o próprio inventou, a de segundo avançado fantasma. E Ederson, como sempre, maravilhoso.

O Braga nem se portou muito mal. Não exagerou no anti-jogo (por ausência de mala?!?), tirando alguma demora do guarda-redes e as palavras dementes do seu treinador, no final. Mas o Benfica estava desgastado, e a perder (grande golo de Rafa, aliás. Magistral jogador). Só que o Benfica é o meu herói. É o melhor do mundo, ponto final. Perder não é opção que aceite racionalmente.
E, no entanto, algo de muito estranho se passava comigo. Confesso que não sou o mais calmo dos adeptos, quando vejo jogos do glorioso. Insulto a equipa de arbitragem amiúde. Levanto-me nos momentos de maior tensão, encolho-me nos de maior perigo. Gesticulo imenso! Falo imenso com as mãos. Exprimo-me numa verdadeira dança de irracionalidade, pronto, é isso. Como os italianos, lá está... Mas naquele dia eu não estava preocupado. O filme já ia quase a meio e eu ainda calmo, no meu lugar.

Também aprendi com o meu pai que não há géneros menores, em cinema. Ha muitos filmes, ditos de "série B", que são de antologia. Policiais incríveis, musicais extraordinários. E depois chegou o dia em que me apresentou ao "western spaghetti". Uau! Foi amor à primeira vista. Amei! Tentem imaginar o que é estar na pele de um miúdo adolescente, nos anos oitenta, e ver o Clint Eastwood aparecer num ecrã gigante. De chapéu à cowboy, com aqueles olhos incríveis, semi-cerrados, de cigarrilha ao canto da boca e com a música do Morricone em fundo. Porra!!!! É isto tudo!, pensei. Quis aquelas roupas para mim também, mas não havia em lado nenhum. Comprei as cigarrilhas, sem o meu pai saber, e umas botas. Ensaiava o semi-cerrar de olhos eastwoodiano em casa, em frente ao espelho, ou quando ia para a escola, em qualquer reflexo das portas vidradas do autocarro ou do metro. Que paixão me suscitava aquela tensão, aquele crescendo de caos, em que os vilões vão esticando a corda, esticando-a cada vez mais, com as suas vilanias. E tu vais sentindo a injustiça a aumentar, enquanto te identificas com o sofrimento das vítimas e te angustias. É muito incómodo, o presenciar da injustiça. Leone e os outros sabiam-no muito bem. Só que, lá no fundo, tu também sabes algo fundamental. Sabes que é tudo uma questão de fotogramas, até que o enredo se resolva em clímax. Não sabes bem quantos fotografas serão necessários. Podem ser cem, mil ou dez mil, mas, inevitavelmente, sabes que o Eastwood vai entrar e meter ordem naquela merda toda. Pode até ter um ar de quem não liga muito ao que quer que seja, mas acabará sempre por fazer o que é certo. No limite. É precisamente nesse ponto que acaba a primeira parte.

E depois entra Jonas. Jonas Pistolas! O meu coração fica mais quente, reconfortado. Jonas vai resolver isto tudo, como o extraordinário jogador que é, tenha a certeza. Quando já meio estádio assobiava a equipa (já agora, vão assobiar o real caralho que vos foda a todos), quando alguns já perdiam a esperança, Jonas Pistolas entrou em cena, e não saiu mais. Com as pistolas sempre apontadas, indicando aos companheiros o que fazer em cada momento, impôs no caos reinante a sua ordem superior e esclarecida. Tudo começou a ir para o seu lugar natural. Carcela mais vezes na direita, e muito mais perigoso. Talisca a acertar alguns passes, e bem. Até Salvio subiu de rendimento, pela batuta de um maestro que reconhece de olhos fechado. E, numa jogada muito bonita, de futebol moderno e esclarecido, surge o primeiro. Jonas Pistolas fuzilou a baliza adversária e o estádio caiu. Começava a limpeza.
Depois disso, continua o entrosamento. Estou tão calmo, mas excitado ao mesmo tempo, só de tentar adivinhar de que forma o Pistolas fará a limpeza final. E, vai daí, ele inventa um maravilhoso passe rasgado, segue-se um "semi-piru" do palhaço-mor do início dessa noite, merecido, e depois Raúl. Já está!

Uma das coisas que gostava, nos western spaghetti, era do contraste que a humanidade das suas personagens fazia com o "Hollywood clean" típico daqueles cowboys sempre impecáveis. Ao contrário de Wayne, direitinho sobre o seu cavalo, sempre de barba feita e lencinho composto, as personagens de Leone empoeiravam-se, tinham a barba por fazer, e andavam porcas de tanta falta  (evidente) de banho. Relacionavam-se com rameiras e bebiam à larga. Claro! Mas depois vinha o herói. O herói tinha, normalmente, uma aura imaginária, algo de quase supra humano, que o tornava extraordinário. Demasiado rápido a sacar, demasiada pontaria, demasiado sentido de oportunidade. Demasiado bom para ser verdade, pensava eu. É aqui que falha a verosimilhança, pensei. Só que não podia estar mais errado.

30 anos depois, dou comigo a comprar um jornal desportivo porque tem um cromo com o Jonas. Outro porque tem uma caneca com o Jonas. Outro ainda simplesmente para ter o recorte de uma notícia sobre o Jonas. Comprei a Red Photo, para tirar um foto com o Jonas. Tenho uma camisola oficial com o nome e número do Jonas. E já penso em ter a segunda, agora em vermelho. Isto não é muito comum, bolas. De repente parece a adolescência, outra vez!!! Que mal terei feito eu para ter esta compulsão?

E foi depois deste jogo de segunda feira, quando analisava, à posteriori, a minha invulgar calma durante a primeira parte, que me apercebi da razão. Reencontro-me com o Filipe adolescente e digo-lhe que, afinal, Eastwood existe mesmo. A verosimilhança do herói foi resgatada, puto. Jonas é Eastwood! Jonas Eastwood Pistolas!!! Num final de campeonato com tanta vilania, Jonas, do alto dos seus 32 anos, continua a correr como se energia fosse uma coisa própria de gente mais velha e sábia. Orienta a equipa, organiza, aponta, ensina, dirige, está em todo o lado e faz bem várias funções. Jonas é o antídoto contra a mala, é aquela bala disparada à peida de um violador. Quando pensas que pode estar tudo perdido, Jonas salva. Mesmo sem disparar, só apontando, Jonas é a chave para este campeonato de vilões. E, curiosamente, invertendo até uma certa iconografia cinematográfica, onde reconheces normalmente um prisioneiro por ter uma bola presa aos pés com uma corrente. Até nisso Jonas é redentor. A bola de Jonas é leve e libertadora.

Desbloqueia-nos o campeonato à lei da bola já neste domingo, Jonas Eastwood Pistolas.





5 comentários:

Ricardo Fernandes disse...

Vou tentar escrever poucas linhas sobre o que se passa agora no Glorioso, embora sempre me perca na elaboração de pensamentos.

O problema actual do Benfica, está no medo de Rui Vitória em expor-se ao golo. Estamos novamente a jogar com um duplo pivot de meio campo e com as alas bem abertas. Mesmo um Pizzi cansado não justifica tanto colar À linha, nem conhecemos Renato a jogar lado a lado com Fejsa ou Samaris.

A equipa fica mais compacta defensivamente assim. um bloco de 4 + 2, sendo que a ideia é disparar bolas para trás da defesa, na expectativa que um dos alas ou gente da frente resolva (André André, Hernani). Essa é a razão (não neste jogo) que Jonas, quase parece jogar a 10. Tem de vir atrás buscar jogo.

Nas segundas partes tudo muda sempre, Renato ou na segunda, Talisca sobe no terreno, a bola já é transportada pelos centrais até ao bloco médio adversário e quando chega ao 8 este já tem 4 linhas de passe. Se for o Pizzi na direita tens um interior se não o for não tens.

Portanto, não creio que estejamos em baixo rendimento, acho que o nosso treinador acredita que estamos assim menos expostos ao perigo. Mas já é o 4º jogo assim... já devia ter percebido que não funciona, principalmente porque muda a estrutura na segunda parte de todos os jogos.

Joca disse...

Pese embora o acerto de análise, arrisco a inserir um pouco de veneno negativo.
Porque será que treinadores como Paulo Fonseca, o Manuel Machado, e semelhantes, que na maior parte do campeonato vestem a camisola de 'bom', quando defrontam o SLB passam facilmente para 'mau' ou mesmo 'vilão' como foi o caso do Sérgio-n-vezes-expulso-Conceição?

Que se passa para gente adulta ter raiva, ódio, ou antipatia para com o nosso clube?
Nunca há mérito na equipa, foram sempre condicionados, etc. Quando jogam contra o Porto ou outros clubes regionais, deve-se sempre à qualidade da equipa oponente, no SLB é sempre por causa do árbitro.

Se fosse um ou outro treinador, entendia-se, mas são quase todos.
Que raio tem o nosso clube para que o odeiem tanto? Ou no mínimo que não sejam justos para com ele?

Falo com amigos de outros clubes e dizem que tenho a mania da perseguião. Mas vejo as declarações do treinador do Marítimo quando foi humilhado, e parece que foi uma questão de sorte. Parece que só perdeu porque teve azar, foi como se nem tivesse jogado com o bicampeão da competição.

Já li por aí algures, que o SLB devia repensar as suas relações com outros clubes. Concordo.
Não percebo nem acho que se justifica este 'ódio' ao clube que é feito 'vilão'. Certo que existe gente que se serve do clube para destilar a frustração de uma vida insatisfatória.

Mas quando largas falanges da população preferem berrar com as derrotas da nossa equipa do que com as vitórias da sua, devemos perguntar que raio se passa neste país.

Ao vilão ainda se deve algum respeito. O SLB é só O alvo a abater.Isto não é perseguição, é um facto.

Os dirigentes que têm a honra de conduzir os detinos do nosso clube deviam pensar nisto e agir de acordo.
Quando o fizerem, talvez me faça sócio, como prometi em 1988, caso o glorioso fosse de novo campeão europeu.

Até lá não pagarei com o meu trabalho, a ligeireza com que alguns 'responsáveis' se esquecem da eleição que é ser-se do Sport Lisboa e Benfica.

Anónimo disse...

Excelente texto sobre um jogador inteligente, tecnicamente irrepreensível, e que vai deixar um marca indelével no coração de todo os benfiquista, e sobretudo muitas saudades ...
P.S. então,e o Roberto Begnini :)

João Gaspar disse...

Gostei de ler Ricardo Fernandes!

troza disse...

Grande post. Fantástico :)