quinta-feira, 19 de maio de 2011

O que eu vi em Braga - Parte 1 - A viagem

Tarde solarenga, propícia à janela escancarada e ao motor em movimento. O essencial estava no carro: garrafas de água, rádio ligado, tabaco e, claro, o cachecol apertado no vidro traseiro para anunciar ao que ia.
Até à portagem, pouco sinal de vida benfiquista. Uma buzina aqui, um puto no carro à frente a olhar para trás e a dizer-me adeus, alguns olhares cúmplices, tímidos, e pouco mais. Estava calma a tarde das meias-finais da Liga Europa.
Passados os primeiros quilómetros depois da portagem, então sim, a romaria parecia querer aparecer e vi de tudo: desde os clássicos cachecóis no vidro às bandeiras no vidro de trás. Mas o vencedor da A1 foi um gajo que levava o carro todo vermelho, coberto de bandeiras e cachecóis por todo lado (até nas jantes!) e uma bandeira gigante de 3 metros enfiada entre o banco do pendura e a porta. Ultrapassei-o, buzinei, disse-lhe adeus e... nada. Com uma cara enfiada na estrada, o braço esquerdo tapando o vidro, este benfiquista, apesar de todo o festival circense da viatura, ia deprimido. Não sou dado a superstições mas aquela expressão de enfado alertou-me para uma noite de mágoa.
Cabelos ao vento, sol em barda, música boa, buzinadelas cúmplices depois, páro na estação de serviço de Pombal para um natural soltar das águas e uma cerveja fresquinha que a sobriedade começava a parecer coisa absurda.
Encontro o nosso deprimido sentado em frente a um pão com chouriço e, claro, uma mini Sagres. Não resisto e comento-lhe a festividade benfiquista que transporta no carro. Meio resmungão, lá me responde que os filhos o ajudaram na decoração. "Está bonito", digo, e avanço aquele número conhecido: "hoje é para ganhar!", ao que ele me responde: "não acredito". Segundo sinal de preocupação, mesmo não sendo supersticioso. "Então o amigo vem todo armadilhado até Braga e não acredita?", digo eu numa última esperança de que o destino nos moldasse a tragédia. "Foi uma promessa que fiz no jogo na Holanda, mas acredito pouco neste Benfica". Respondi-lhe qualquer coisa automática, "não diga isso!" ou "vai ver que tem uma surpresa" e aproveitei para fugir daquele mau karma enquanto podia.
À saída da área de serviço, um gajo sentado na relva a pedir boleia, com um atrelado de coisas, entre a guitarra e duas malas cheias de não se sabe bem o quê. Páro o carro, ele chega-se perto, analisa-me e acha que eu sou merecedor de lhe dar boleia. Os carros atrás à espera e ele a encher o banco de trás com tralha de 5 anos de vida nómada.
Era húngaro. Nome? Miklós (karma, karma, sai de mim). Para onde, Miklós? "Porto" (Karma?). Deixo-te em Gaia, Miklós, que o trânsito no Porto é uma afronta à humanidade e eu tenho um jogo para ver mais a norte. De Pombal até deixar o húngaro, esqueci o futebol.
Falámos de assuntos menores: da vida, da sociedade, de como viver nela, com quem viver nela, de quem fugir dela, e outros assuntos menores como a agricultura biológica, o estado do planeta, religiões alternativas e a possível vida em Marte. Foi bom. Serviu para esquecer o essencial e as superstições negativas que vinham vindo atreladas ao meu carro desde que saí de casa.
Em Gaia despedi-me do Miklós, dei-lhe umas garrafas de água, que ele recebeu por simpatia embora prefira, palavras dele, a água dos canos. Despediu-se de mim com um "os portugueses são mais humanos que os espanhóis" e deixou-me no carro um colar. Adeus, Miklós, encontramo-nos na Índia.
Ainda esquecido ao que ia, rapidamente o destino mo lembrou: à saída da área de serviço estava o nosso companheiro benfiquista encostado à berma a retirar toda a indumentária do carro. Compreende-se. Como o mundo anda, é melhor preservar as viaturas às pedras, aos escarros e aos insultos. O benfiquista ia deprimido mas não ia seguramente desavisado. Fiz-lhe um aceno, ele não respondeu e eu segui até Braga sem passar pelo Estádio do Dragão não fosse o destino dar-me mais notas musicais da ópera bufa que iria ver de seguida.
Chegado a Braga, parei o carro ao pé da estação de comboios (onde um amigo me vinha encontrar) e fui beber médias para o pé do Café Benfica, que é um café onde as pessoas odeiam o Benfica - na segunda parte, vão perceber o fenómeno.
O dono era um antigo sportinguista, agora do Braga, às vezes do Porto e nunca do Benfica. E eu fiquei sem saber se o Miklós tinha conseguido encontrar a comunidade de ocupas lá para os arrabaldes do Douro.

6 comentários:

anauel disse...

Estou a gostar, sim senhor!

editor69 disse...

Tb...
realização de Fellini?

:)

Ricardo disse...

Escolheria o Fellini para a Parte 2 - seria o realizador perfeito de um fenómeno tão absurdo como o vivenciado por este que vos fala e escreve.

Editor, conheces a Tapada de Mafra? Estive lá este fim-de-semana num casório. Não conhecia o sítio e fiquei curioso em saber mais sobre ele. Sei que era do nosso caçador D. Carlos. E é só. Se tiveres mais informação, atira-a para aqui que será muito bem recebida.

Mr. Shankly disse...

Muito bom, parece um daqueles livros que lemos com redobrado prazer porque já sabemos que acabam mal.

editor69 disse...

O pouco que sei acerca da Tapada é que foi criada por D. Joao V (o do ouro..ehehehehe) para deleite dele e da sua nobreza nas caçadas e que foi seguindo até D.Carlos que era boa espingarda.
Estive lá uma unica vez à anos nas rodagens de "O Processo dos Távoras" e mais não sei a não ser que é administrada pelos militares.

Abraço

editor69 disse...

@Ricardo...
http://www.tapadademafra.pt/index.php?mod=articles&action=viewArticle&article_id=83&category_id=47