domingo, 5 de janeiro de 2014

É GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO DO BENFICA, É GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLO DE EUSÉBIO

Não sei o que é, ao certo; se o crescendo

"Sou dooooo Beeenfiiiiica"

se é o orgulho que aquela voz transporta, como que carregando nas sílabas todos os momentos gloriosos que este clube viveu

"e iiiiiiiiiiisso m´envaideeeece"

ou talvez a voz radiofónica dos grandes tenores do século passado misturada com as acentuações perfeitas em português-veludo das personagens dos filmes a preto e branco de filmes de Leitão de Barros, Perdigão Queiroga ou Arthur Duarte

"tenho aaaaaaaaaaa geniiiiica que a qualquer engrandeeeeeeeeeeeece"

parece que vejo a casa da minha avó, a sala ampla, portadas para a luz branca-transparente das paredes solares do Alentejo, na mesa um bordado minucioso, fotografias gastas, um terço, um rosário e o barbudo-mártir ao lado dos pratinhos de pássaros, de mãos e braços abertos para a eternidade. As asas de anjinhos de loiça querendo voar sobre os livros e algo ou alguém, de dentro das histórias fechadas em lombadas a couro vermelho e letras a ouro, que sai e anuncia

"Sooooou de um cluuuuube lutadoooooooooooooooor"

e parece que vejo a sala, depois a casa toda, a rua, a vila e todas as salas, ruas e vilas encostadas de ouvidos à escuta junto à telefonia, enquanto Artur Agostinho canta "É goooooooooooooolo do Benfica, é gooooooooooooolo de Eusébio" e os pássaros dos pratos aterram nos ombros de famílias inteiras em silêncio, escutando golos e passes e defesas, imaginando os lances, criando novos movimentos, inventando as cores que não vêem nos botões do aparelho que lhes sopra que o Benfica está a voar sobre o Real Madrid, que é Cavém, Coluna, de novo para Cavém, abre para Águas, levanta de primeira para a área, Eusébio amortece, remate de Cavém, golo

"que na luuuuta com fervoooooooooooooooooooooooooor nuuuuuuuuuuuunca encontrou rrrrrrrivaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"

e o país explode vindo de um soturno silêncio de damas-de-companhia, medos, fomes, gabardinas e chapéus nos balcões dos cafés, para um grito que faz levantar as saias da donzela tímida que esperava no banco de jardim o seu prometido, que faz ouvir a voz daquele velho sisudo que não dava palavras ao mundo, faz abrir de alegria a cara do pai-de-família que, todo metido no ar, prometeu bebidas, comidas e o que se quisesse a metade do povo que se abraçava, se beijava, se aleijava, se atirava contra as amarguras do tempo enquanto as portas se partiam, mesas eram mergulhadas na intempérie de pernas, braços, cabeças, gente aos pulos, gente aos gritos, gente aos beijos, o padeiro a agarrar na jarra de flores e a levantá-la no ar, em gesto de vitória: "é nossa", e as crianças, espantadas, aos gritos histéricos, a mãe "cuidado com o deus-menino" e o deus-menino estatelado no soalho, embebido em aguardente e ferido de morte pelas vidraças da garrafa, dos copos, das loiças, pés atrás de pés, espezinhado o filho de Nosso Senhor e, na parede, o barbudo parecendo rir de sangue

"neeeeeeste nooooooooooooooosso Poooooooooooooooooooortugaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"

não posso dizer, não sei dizer, o que é, que me faz levantar no Estádio, emocionar-me, ter amor desta maneira por uma ideia que não tem corpo nem precisa de ter, por um ideal, um voo, um sentimento, uma dor e uma alegria tamanhas sempre que oiço

"Seeeeeeeer Beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeenfiquista"

e transporto dentro de mim todas as memórias misturadas numa só, passado, futuro, presente tudo numa amálgama de tempo em que vejo slides difusos, pequenos momentos, grandes momentos, vêm-me à alma aqueles instantes e o Estádio, aquele ecoar do golo que parecia que começava por debaixo da relva e ia espraiando a voz, subindo lentamente pelas escadas e pelos corpos das pessoas, era um língua de som que, quando a bola tocava as redes, nos afundava como onda, goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo e nós morríamos uns nos outros, engalfinhávamo-nos uns nos outros, já sem saber se as pernas e os braços eram nossos ou dos outros, uma massa compacta de gente e cachecóis, bandeiras, chapéus, camisolas, sapatos, fumo, papelinhos e o ritmo que subia, pulsava, o chão tremia, o ar vibrava e começava a dança

"é ter na aaaaalma a chama imensa, que nos conquiiiiiiiiista e leva à palma a luz inteeeeeeensa"

e o Sol vinha mesmo, risonho, beijar-nos, em tardes que pareciam infinitas, tardes que amoleciam o betão e se prolongavam para lá do possível

"com orgulho muito seeeeeeeeu, as camisolas berrantes, que nos campos a vibraaaaaaaaaaaaaaaaaaar"

e os velhos lembravam-se de ter erguido com as mãos as vitórias e o Estádio, os novos ouviam e queriam fazer parte, os Pais levantavam os filhos, mostravam-lhes o que era aquilo, queriam-nos ali para toda a vida, e os filhos mostravam orgulho e gratidão por poderem vibrar, e pais, filhos, avôs, netos, estranhos, conhecidos, amigos, amantes, namorados olhavam-se dentro do golo e cantavam

"são papooooooilas saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaltitanteeeeees"

e então calava-se tudo um instante, um pequeno instante em que 120.000 pessoas não faziam um único ruído, jogadores e adeptos numa espécie de comunhão do silêncio, os holofotes como templos antigos, os placards electrónicos gigantes anunciavam 00:00, cheirava a relva e a terra molhadas, a fumos inebriantes, sentia-se um pulsar que era a própria respiração do Estádio, tum tum tum tum tum tum, e era de dentro dele, por osmose do betão para os pés, depois pelo corpo, até ao céu, que se iniciava o estrondo da batucada

"Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica!"

6 comentários:

luis disse...

"Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica,
Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, ..."

1942-2014, B T T :(...

Miguel A. disse...

Eu queria, hoje, se fosse possível, voltar a reviver as alegrias tão grandes, tão imensas da minha infância - os relatos dos domingos e os golos do Eusébio, os posters do Eusébio à venda nos quiosques, os posters da equipa do Benfica do princípio dos anos 70 e o Eusébio com a braçadeira de capitão ajoelhado entre o Nené e o Vítor Martins e o Jordão e o Messias e o Matine, o Zé Gato com camisola amarela, calções azuis claros e meias vermelhas, queria, se fosse possível, reviver aqueles jogos emocionantes com o Ajax para a Taça dos Campeões. Vi tão pouco do Eusébio, queria tanto reviver o pouco que vi e ouvi dele. E de repente hoje vêm-me com esta notícia, esta mentira, e a minha infância está mais longe e ao mesmo tempo tão incrivelmente perto, e recordo as futeboladas na rua até altas horas no Verão, e todos queríamos ser o Eusébio e os nossos pais nunca ficavam preocupados por estarmos na rua porque estávamos a jogar futebol sob a sombra tutelar, amigável, generosa e bondosa do Eusébio.

E agora escrevo, as memórias vêm umas atrás das outras, e do tempo da minha infância acena-me o Eusébio a saltar de punho erguido a festejar um golo, as bandeiras do Benfica desfraldadas nas tardes de final da Taça no Estádio Nacional, o silêncio no meu bairro enquanto decorria a final, e de repente a rádio a gritar golo do Benfica!, Eusébio!, e eu a sonhar com uma camisola do Benfica nº9 que se comprava na Casa Sena, era tão cara, nunca foi possível comprá-la,foi sempre a maior e a mais secreta ambição da minha infância, aquela camisola, mas eu sabia que não a podia pedir, e agora vêm-me com esta mentira, esta notícia tão estúpida e tão falsa, só tenho vontade de estar amanhã de manhã na Casa Sena e comprar a camisola nº9 e mostrar a toda a gente que a bola já partiu e que o Eusébio já sabe que ela vai entrar e abre os braços antes de desatar numa correria louca e saltar com o punho erguido a festejar o golo do Benfica, louco de alegria como todos nós.

Anónimo disse...

larga a droga

Kiddo! disse...

Excelente post, Ricardo e excelente comentário do Miguel A.
Ontem morreu uma parte de todos nós e do nosso Benfica.
Que saibamos todos honrar a memória do génio Eusébio através da nossa forma de estar no futebol e dos valores da seriedade, humildade e verdadeira sede de vitória!

Cumps.

João Neves disse...

Não outra forma de ler este post que não seja a cantar o hino do Glorioso, nem que seja mentalmente visto estar rodeado de colegas de trabalho que não partilham o mesmo clube que eu. E ainda bem, porque para doente aqui já chego eu.

Viva o Benfica. Viva o nosso REI.

eagle01 disse...

O comentário das 00:23 está a mais ...