terça-feira, 27 de março de 2012

Aquele abraço do golo

Quando o Simão recebe a bola no meio, a ajeita com um afago e remata para a baliza de Reina, a sala ficou por uns momentos parada, comigo, o meu Pai e a Joplin - a cadela - todos no ar à espera do golo. 

Se pudéssemos voltar a esse momento e o congelássemos em pause, notaríamos os nossos joelhos flectidos, as bocas num princípio de entoação e os braços a crescerem para o tecto. A cadela em salto do sofá para o chão, apanhada a meio da viagem, em voo, as patinhas da frente esticadas, o pêlo todo para trás e as orelhas distorcidas. Na televisão, ver-se-ia a bola na zona do penálti, pelo ar e Reina num gesto horizontal de desespero. 

Atente-se nos copos de cerveja em diagonal, gotas de líquido paradas na atmosfera, pratos de amendoins oblíquos e ervilhas de salada russa pulando acima da linha da mesa, tapando metade do ecrã entre o poste esquerdo e a cabeça de um defesa do Liverpool. O fumo dos cigarros verticalíssimo e também em ondas, congelado no tempo como uma pintura abstracta - com detalhe, ainda é possível ver figuras imaginárias que o fumo faz. Os cabelos do meu Pai soltos e para trás e a minha mão num gesto de movimento que faz desfocá-la. 

Como se estivéssemos empurrando a bola para o golo, há dois pés - um do meu Pai, outro meu - que a chutam no ar por debaixo da camilha e a cadela salta para o cabeceamento oportuno. Vêem-se ainda, se bem observado, os nossos braços em trânsito um para o outro, como se o golo fosse apenas a desculpa para um abraço. 

Não há forma possível de voltar a esse lugar. Ainda o mundo nos não permite a congelação em arca frigorífica dos lugares mágicos, junto aos hamburgueres e bifes de peru. Talvez um dia alguém muito mais novo que nós - porque nascido num mundo mais velho que este - invente a propriedade essencial com que se constroem as máquinas de refrigeração dos segundos antes do golo. Por ora, e sem tecnologias adequadas, coloquemos o dedo no play e vejamos o que acontece.

Explode a bola nas redes! Caem amendois, pedaços de chouriço, o pão voa na direcção da lareira, todas as cervejas inundam a mesa e, como cascata, vão descendo numa visão surreal de quotidiano mal explicado. O golo é cantado com mil gargantas dentro de duas, eu e o meu Pai abraçamo-nos, a cadela assusta-se e foge para debaixo do móvel. Na televisão, os jogadores do Benfica vão de cinzento em direcção a uma câmara. Até Beto e seu cabelo amarelo faz parte da trupe. 

Nada disto vimos, envoltos num abraço milenar povoado de sonhos e alegria. Quando mais tarde virarmos os olhos para o ecrã, já o Liverpool ganhou um fora na direita ofensiva. Mas nada disso conta para esta história. Nada importa que não seja já sabido - Miccoli faria mais tarde, bem mais tarde, uma bicicleta que o faria correr que nem um louco para os olhos do próprio Pai, no meio do apocalipse benfiquista de Anfield Road.

Hoje não haverá Pai nem haverá Joplin. Estão os dois parados no meu tempo e na minha memória, como entidades que sobrevivem ao passar dos minutos e horas e dias. Congelei-os dentro do coração, sem máquinas avançadas nem ciências transcendentais. 

Para hoje peço que muitos joelhos flectidos e muitos abraços no abismo do abraço aconteçam. Com amigos, entre amigos, em família. Um estádio todo suspenso no ar e as bolas em trânsito mortal para o golo.  



22 comentários:

Miguel Nunes disse...

Está muito bom Ricardo.

Pedro Ribeiro disse...

é difícil escrever um comentário depois de ler isto

Constantino disse...

Um texto destes não se pode comentar pah. Assim não vale.

Abraço

Pedro disse...

Excelente. Como costume!

JC disse...

Sem palavras, pá. Sem palavras.

Grande abraço

Diego Armés disse...

Se me permites, vou saltar os elogios ao texto - esta mariquice de "ai, tão bonito" daqui, "ai, mas que bem que escreves" dali, tem de se acabar.

No Carvoeiro, ao cimo da Calçada de São Vicente, havia lá uma certa mesa que sofreu efeitos erosivos muito semelhantes aos que descreves - diria que o golo do Simão foi devastador para os nossos jantares, para as duas garrafas de tinto (que ainda o tinham dentro, algum, pelo menos), para os copos de cerveja, até para a taça com as azeitonas temperadas. A minha cadeira caiu, virada ao contrário, contra as costas de uma senhora que estava claramente em fora-de-jogo, uma mal criada que nem me pediu desculpa por estar compenetrada a jantar uma dourada escalada com feijão verde ao mesmo tempo que o Benfica esfragalhava aqueles ingleses aburguesados. Feijão verde, vejam só! Do jogo, propriamente dito, lembro-me que o Miccoli se virou de pernas para o ar para fazer golo - e continuo convencido de que aquela primorosa assistência do Beto daria um belíssimo lançamento de linha lateral para o Liverpool se o pequeno palérmico não tivesse interceptado o remate.

Nuno disse...

Um abraco de um alentejano em terras do tio Sam.

Pedro disse...

Boa tarde Ricardo,

Sublime!

Até logo meu amigo, vêmo-nos em casa!

Abraço
Pedro

Luis Rosario disse...

Lá por Carnaxide a efusividade foi controlada, mas o desejo de estar a abraçar o meu irmão que estava em Anfield nesse momento foi tremendo!

Que logo seja possível ele sentir o inverso de Phoenix para a Luz!

Até já!

Hugo disse...

Isto é o Benfica Ricardo...

Obrigado!

Catenaccio disse...

És grande, Ricardo :)

CARREGA BENFICA!!!

Anónimo disse...

Se te conhecer um dia podes crer que tens a cerveja paga o dia todo ;) Nem que seja para compensar as que voaram nesse dia

Vladimir Kaspov disse...

Foda-se que ilustração, fizeste um desenho com palavras! Com mais javardice dessa hoje tb quero festejar... depois limpa-se.

Ulrich Haberland disse...

Um abraço para ti Ricardo

Passaralho disse...

Abraço, Ricardo.

Não foi hoje, mas voltará a ser.
Nós faremos com que torne a ser assim.

Unknown disse...

Eu estive em anfield, onteem vi pela tv o que já esperava, mas depois das minhas mensagens de força, vou ausentar-me da blogosfera começando um pouco antes do jogo com o braga até depois do jogo com o sporting por motivos "profissionais".
Como já ando há muitos anos a virar frangos,
como vejo o pessoal todo excitado com uma derrota contra metade da equipa titular do chelsea a dizer que mereca ter ganho (será que nos estamos a transformar nos nossos vizinhos ???),
como vejo o ramires a dizer que tinham que atacar pelo lado fraco e o jesus a dizer que o emerson fez um bom jogo e tem a confiança dele
como vejo o nolito a dizer que têm que ter c@lh@es e sair com tudo para cima do chelsea para marcarem 2 e ganharem o jogo e provavelmente vais estar no banco em Londres,
como vejo que o Ramés levou 1 jogo por agressão a murro a um gajo e o Aimar consegue levar 2 jogos por nem ter agredido o Rui duarte, e não Ricardo, por muito que o aimar se tenha posto a jeito, aquilo não é lance de expulsão,
como vejo o jesus a tirar o aimar para meter o matic e desviar o witsel do meio para ficar com a dupla javi/matic e um buracão à frente,
como vejo jogar um rodrigo que jesus inutilizou em guimarães,
como já estou farto de ver os outros festejar e os sem neurónios dizer que temos que apoiar, inclusivamente o emerdon,
declaro-me farto desta merda!!!
Aliás, só volto lá para o meio de abril, quando já estiver tudo resolvido incluindo o nosso título do costume, a taça da liga

Anónimo disse...

Caro Bcool973,
Estou contigo a 110%!
Também não ponho mais os pés no estádio enquanto o Emerson for jogador do Benfica!
É mau demais para ser verdade.

Zita

Maria Flausina disse...

E é por posts destes que, apesar do meu coração ser verde (e não quero saber das "questões sanguíneas e quejandos", é verde e mai nada), continuo por aí à espreita e fiquei mesmo triste porque o Benfica perdeu ontem...

David Duarte disse...

Bcool973, tudo o que dizes é correcto. Eu proprio não diria melhor! Mas ser adepto de um clube é sê-lo sempre. Porquê? Muito simples: os adeptos são o clube :

- são os adeptos que sofrem quando o Gaitan escolhe a dedo os jogos em que decide transpirar um bocadinho;

- são os adeptos que sofrem quando vemos jogadores da (falta) de qualidade de Emerson a titular;

- são os adeptos que sofrem quando um treinador casmurro e BURRO não compensa em Janeiro as falhas evidentes do plantel do Benfica;

- são os adeptos que sofrem quando o Presidente escolhe a dedo os momentos para fazer entrevistas, desaparecendo quando a equipa està a ir-se a baixo;

- são os adeptos que sofrem por fazerem centenas de quilometros, gastar centenas de euros para verem jogos em que a equipa passa 90 minutos a dormir;

- e sobretudo são os adeptos que sofrem quando criticam o que de mal està no clube e que são enxovalhados por pessoas sem neuronios que pensam que ser adepto é transformar-se em burro com palas (se não virmos a realidade, então a realidade não existe).

Por isto tudo é que faço questão de estar "presente" à minha maneira (vivendo em Lyon, tento compensar a minha distância com a evangelização deste territorio ateu - ontem vi o jogo com um amigo francês que jà comprou a sua camisola do Benfica ^^). Se adeptos como tu desaparecerem, então o Benfica fica mesmo entregue à merda.

P.S.: Tanto este ano o Benfica não tem parado de me desiludir, tanto acredito que vamos fazer historia em Londres. O Benfica não està bem, mas o Chelsea não nos é superior. O que eles fizeram na Luz, podemos fazer em Inglaterra.

POC disse...

@Ricardo, grandíssimo, fantástico, parabéns.

@Bcool973, é isso...

rogerAjacto disse...

Mais um enorme texto. Excelente, parabéns e um abraço.

eupensopelaminhacabeçaeusoulivre disse...

Vá lá organiza as cenas e escreve o livro, vai por mim que gosto imenso de literatura e vejo quando um gajo percebe da poda... abraço.