segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Faz-me falta o Estádio da Luz

Não sei o que é, ao certo; se o crescendo

"Sou dooooo Beeenfiiiiica"
 
se é o orgulho que aquela voz transporta, como que carregando nas sílabas todos os momentos gloriosos que este clube viveu

"e iiiiiiiiiiisso m´envaideeeece"

ou talvez a voz radiofónica dos grandes tenores do século passado misturada com as acentuações perfeitas em português-veludo das personagens dos filmes a preto e branco de filmes de Leitão de Barros, Perdigão Queiroga ou Arthur Duarte
 
"tenho aaaaaaaaaaa geniiiiica que a qualquer engrandeeeeeeeeeeeece"

parece que vejo a casa da minha avó, a sala ampla, portadas para a luz branca-transparente das paredes solares do Alentejo, na mesa um bordado minucioso, fotografias gastas, um terço, um rosário e o barbudo-mártir ao lado dos pratinhos de pássaros, de mãos e braços abertos para a eternidade. As asas de anjinhos de loiça querendo voar sobre os livros e algo ou alguém, de dentro das histórias fechadas em lombadas a couro vermelho e letras a ouro, que sai e anuncia

 "Sooooou de um cluuuuube lutadoooooooooooooooor"

e parece que vejo a sala, depois a casa toda, a rua, a vila e todas as salas, ruas e vilas encostadas de ouvidos à escuta junto à telefonia, enquanto Artur Agostinho canta "É goooooooooooooolo do Benfica, é gooooooooooooolo de Eusébio" e os pássaros dos pratos aterram nos ombros de famílias inteiras em silêncio, escutando golos e passes e defesas, imaginando os lances, criando novos movimentos, inventando as cores que não vêem nos botões do aparelho que lhes sopra que o Benfica está a voar sobre o Real Madrid, que é Cavém, Coluna, de novo para Cavém, abre para Águas, levanta de primeira para a área, Eusébio amortece, remate de Cavém, golo

 "que na luuuuta com fervoooooooooooooooooooooooooor nuuuuuuuuuuuunca encontrou rrrrrrrivaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"

e o país explode vindo de um soturno silêncio de damas-de-companhia, medos, fomes, gabardinas e chapéus nos balcões dos cafés, para um grito que faz levantar as saias da donzela tímida que esperava no banco de jardim o seu prometido, que faz ouvir a voz daquele velho sisudo que não dava palavras ao mundo, faz abrir de alegria a cara do pai-de-família que, todo metido no ar, prometeu bebidas, comidas e o que se quisesse a metade do povo que se abraçava, se beijava, se aleijava, se atirava contra as amarguras do tempo enquanto as portas se partiam, mesas eram mergulhadas na intempérie de pernas, braços, cabeças, gente aos pulos, gente aos gritos, gente aos beijos, o padeiro a agarrar na jarra de flores e a levantá-la no ar, em gesto de vitória: "é nossa", e as crianças, espantadas, aos gritos histéricos, a mãe "cuidado com o deus-menino" e o deus-menino estatelado no soalho, embebido em aguardente e ferido de morte pelas vidraças da garrafa, dos copos, das loiças, pés atrás de pés, espezinhado o filho de Nosso Senhor e, na parede, o barbudo parecendo rir de sangue

"neeeeeeste nooooooooooooooosso Poooooooooooooooooooortugaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal"
 
não posso dizer, não sei dizer, o que é, que me faz levantar no Estádio, emocionar-me, ter amor desta maneira por uma ideia que não tem corpo nem precisa de ter, por um ideal, um voo, um sentimento, uma dor e uma alegria tamanhas sempre que oiço

"Seeeeeeeer Beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeenfiquista"

e transporto dentro de mim todas as memórias misturadas numa só, passado, futuro, presente tudo numa amálgama de tempo em que vejo slides difusos, pequenos momentos, grandes momentos, vêm-me à alma aqueles instantes e o Estádio, aquele ecoar do golo que parecia que começava por debaixo da relva e ia espraiando a voz, subindo lentamente pelas escadas e pelos corpos das pessoas, era um língua de som que, quando a bola tocava as redes, nos afundava como onda, goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo e nós morríamos uns nos outros, engalfinhávamo-nos uns nos outros, já sem saber se as pernas e os braços eram nossos ou dos outros, uma massa compacta de gente e cachecóis, bandeiras, chapéus, camisolas, sapatos, fumo, papelinhos e o ritmo que subia, pulsava, o chão tremia, o ar vibrava e começava a dança

"é ter na aaaaalma a chama imensa, que nos conquiiiiiiiiista e leva à palma a luz inteeeeeeensa"

e o Sol vinha mesmo, risonho, beijar-nos, em tardes que pareciam infinitas, tardes que amoleciam o betão e se prolongavam para lá do possível

"com orgulho muito seeeeeeeeu, as camisolas berrantes, que nos campos a vibraaaaaaaaaaaaaaaaaaar"

e os velhos lembravam-se de ter erguido com as mãos as vitórias e o Estádio, os novos ouviam e queriam fazer parte, os Pais levantavam os filhos, mostravam-lhes o que era aquilo, queriam-nos ali para toda a vida, e os filhos mostravam orgulho e gratidão por poderem vibrar, e pais, filhos, avôs, netos, estranhos, conhecidos, amigos, amantes, namorados olhavam-se dentro do golo e cantavam

"são papooooooilas saaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaltitanteeeeees"

e então calava-se tudo um instante, um pequeno instante em que 120.000 pessoas não faziam um único ruído, jogadores e adeptos numa espécie de comunhão do silêncio, os holofotes como templos antigos, os placards electrónicos gigantes anunciavam 00:00, cheirava a relva e a terra molhadas, a fumos inebriantes, sentia-se um pulsar que era a própria respiração do Estádio, tum tum tum tum tum tum, e era de dentro dele, por osmose do betão para os pés, depois pelo corpo, até ao céu, que se iniciava o estrondo da batucada

"Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica, Benfica!"



24 comentários:

LDP disse...

Porra. Se existisse o Pulitzer para blogs jà irias quase nos 16.000.

Magnìfico.

Anónimo disse...

Este texto ( e outros teus) deveria ser lido esta terça e no próximo sábado, antes de entrarem em campo...

Parabéns. Escrever é fácil, mas escrever e dizer o que a alma carrega é muito complicado, e tu, fazes isso na perfeição. Tens o dom de dizer aquilo que muitos de nós pensamos mas nunca o conseguiriamos escrever.

p disse...

TEXTO F-A-B-U-L-O-S-O! Estou todo arrepiado! Senti o Benfica subir por mim enquanto lia este magnífico pedaço de prosa. Muitos parabéns, Ricardo. E Obrigado.

Uma ideia bonita podia ser arranjar alguém para meter em vídeo. Um declamador que lia o texto e quando eram as passagens do hino aparecia a música com o nosso Piçarra em grande estilo! Mas isso não é para mim porque não percebo nada de fazer vídeos. Pensa nisso.

Amanhã é para ganhar, benfiquistas. Carrega!

Red Sniper disse...

São estes textos do Ricardo que tem o condão de reavivar de quando em vez,as lavas desse enorme vulcão que cada benfiquista transporta dentro do peito,rápidas a subir no espaço a cada explosão de alegria!
Bem haja por isso.

P.S.Porque será que o Pedro Oliveira e o MM saem daqui cada vez mais azedos ?

Ulrich Haberland disse...

Esse também é, e será sempre, o "meu" hino.
Aquele que canto de pé, olhando o estádio em volta com um orgulho muito meu, e revisitando momentos do tipo "best days of my life".

Não engulo modernices.

Amplexos

P.S. - Também gosto de Bethânia, sobretudo a declamadora.

João Duarte disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Duarte disse...

ehehe está de puta madre!

o texto e a foto em cima. Enquanto nos EUA ainda se discutiam os direitos civis, e na Europa assobiava-se para o lado pq as vagas de emigração ainda não tinham chegado, nós tinhamos um capitão preto, dentro e fora de campo.

Ca ganda Benfica, pá!

Unknown disse...

Então ? Ninguém reclama ? Porque eliminaste uma estrofe ?
"Do Sol que lá no céu risonho vem beijaaaaar"

Mentiroso disse...

Ricardo és um portento sem paralelo. Nunca deixes de escrever com esse sentimento que tão bem te caracteriza.

Ricardo disse...

Obrigado, meus caros. Fico feliz que o texto consiga ir buscar sentimentos ao fundo de vós. É esse o objectivo, num dia em que voltaremos aos grandes palcos de Inglaterra.

Já vencemos, em terras britânicas, Arsenal, Liverpool e Everton (escapa-me algum?). Será hoje que venceremos no teatro dos sonhos?


Bcool, ela está lá, só de outra forma.

Constantino disse...

Es um lamechas do caralho (a palavra lamechas deve vir sempre acompanhada de um palavrão a ser lido em voz alta para dar enfase à lamechice) e depois despertas a saudade que há em todos nós (olha a poesia em movimento catano, poesia em movimento)

Mr. Shankly disse...

Lindo. Adoro este hino, para mim não há outro. Põe-me sempre os cabelos da nuca em pé.
Magnífica fotografia, também (não conhecia). O italiano (Maldini?) parece fazer reverência ao sr. Mário Coluna.
I saw you at Wembley yesterday?

rogerAjacto disse...

Fantástico! Abraço.

Constantino disse...

Shanks,

A mim parece-me é que o Maldini esta a olhar para as pernas do Coluna e a pensar "deixa cá ver qual o joelho que o Pivatelli te vai desmanchar"...

Convem referir que durante anos se pensou que tinha sido o Trapp a esfrangalhar o Monstro Sagrado, mas a Velha Raposa insiste que foi o Pivatelli e entre um tipo com um nome fanhoso ou um tipo que nos deu um campeonato.... vou acreditar no adjunto do Alvaro Magalhaes (todos sabemos que os adjuntos é que são responsaveis pelas vitorias em campeonatos, ou não é bem assim?)

Ricardo disse...

Constantino, seu sentimentalão, foda-se, caralho.

Shankly, encontrei-a no SerBenfiquista. É linda, não é? A qualidade espanta-me. E as cores! É que eu pensava que eles jogavam a preto e branco, num relvado cinzento. Afinal, não. E a bola?

É o Maldini Pai, sim. O Cesarese. E é Wembley, claro. Esta teria sido a terceira Taça dos Campeões Europeus consecutiva. E merecíamo-la. Mas houve porrada da grossa. E o Milan era uma equipa excelente - andava por lá um tal de Trapattoni...

Abraço, Roger. Ainda andas pelos Algarves?

Unknown disse...

Apenas destaquei porque é a única que não está literalmente lá Ricardo.
De resto, excelente texto, pois já várias vezes tive oportunidade de verter uma lagrimita do canto do olho, como dizia o Bacelote, em especial quando nos abraçamos e além dos nossos amigos, perfeitos desconhecidos aparecem delirantes, como foi em Anfield, ou no Bessa (antes, durante e na vinda para baixo), em casa contra o Marselha atrás daquela mítica baliza ao lado dos diabos, ou quando o Luisão selou o triunfo no campeonato. Até quando saí duma frequência, que passei mais interessado em ouvir à socapa no auscultador do rádio, expulso (obviamente tive zero, injustiça) após o 3-0 ao gil vicente (na vermelha braga, bons tempos) e comemorámos no bar da universidade aquele título sobre a ex-ufana lagartagem ou quando no fim de semana anterior debaixo duma chuvada ganhámos ao união. Quando démos 3 no amadora (estava com uma ressaquite na cabeça) naquele escaldante dia, enfim tantos momentos em que nos irmanamos na vitória e cantamos. Mesmo quando perdemos em Barcelona mas saímos convictos da injustiça.
Seja como fôr, cada vez que vou ao estádio e oiço o hino e lembro-me dos que já partiram e foram responsáveis por ser sócio, dos que cá estão e me formaram como benfiquista, dos bons e dos menos bons momentos, dá-me para a lamechice e lá vem a puta da lagrimita. Que caralho! Vai começar, VAMOS GANHAR !!! É o Manchester United, que se foda, É PRA GANHAR CARALHO !!! Foi assim na luz com o Geovanni e o Beto (o Beto caralho), será assim hoje, marque quem marcar, VAMOS GANHAR !!!

Ricardo disse...

Cesare, não Cesarese. Estava a pensar no Cesare Pavese, o gajo que um dia escreveu: "Trágico não é a morte do primeiro amor, é a descoberta de que se pode viver com isso", precisamente o que sinto quando penso no Estádio da Luz.

Constantino disse...

Ricardo quando penso em "saudosismo do Estadio da Luz" nunca penso no actual, penso sempre no outro, aquele grandalhão. Este um tipo pode ter saudades mas sabe que ele está lá e que um dia destes voltamo-nos a encontrar, é tipo aquela ex.namorada que temos a viver na Tailândia, mais tarde ou mais cedo vamos reencontra-la e se entretanto já estivermos solteiros, ate sabemos que ela traz truques novos. Agora o Estadio da Luz original... puta que pariu... é como aquela ex.namorada que emigrou para a papua Nova guiné que sabes que nunca mais vais voltar a ver porque lá já não param mais aviões e os papuanos já a esbardalharan toda.

Só a titulo de curiosidade: se me pergutnarem o que mais sinto falta da Luz original, respondo rápido "as tochas e fumos vermelhos". Na nova Luz não têm o mesmo efeito...parece que o estadio tem demasiada iluminação óh o catano...

Unknown disse...

Eu sinto falta do troar que o estádio fazia quando batíamos os pés que fazia os adeptos borrarem-se de medo ... do respeito que lhes causava entrarem e olharem à volta e verem aquele gigante imponente

Mr. Shankly disse...

O Pavese escreveu isso? Muito bom. Só li "A Lua e as fogueiras". Se calhar até é daí, mas tenho dificuldade em reter frases soltas.

rogerAjacto disse...

Ui, os Algarves já foram há muito. Agora estou pelo Alentejo, em Redondo. Mas a gente põe a escrita em dia um dia destes, não?

Ricardo disse...

Se viesse um ser de outro planeta e aterrasse neste blogue, perguntaria: "de que tochas falas, Constantino?"

Alien, tochas, luzes, fumos e cores como nunca viste. Uma festa sensorial. Havia dias em que passávamos 10 minutos a tentar encontrar o nosso cancro do pulmão. E depois víamos o jogo.

Nunca li esse, Shankly. É bom?

Estás na terra dos Salomé, malandro? Linda, essa. E tens uma enoteca de luxo! Para além dos pratos do man que domina o barro. Já morreu? Saudades do arco do Redondo e das bezanas. Vou a Vila Viçosa em Dezembro. Está feito?

Unknown disse...

APURADOS CARALHO!!!!

David Duarte disse...

So para quem não sabe. "Avante p'lo Benfica" esse é realmente o hino do Benfica. "Ser benfiquista" foi composto devido a pressões do fascismo que não tolerava que o maior representante do desporto português (e de Portugal) tivesse como hino uma canção cujo titulo faz referência ao movimento comunista.

Esta é a historia dos hinos benfiquistas que pouca gente conhece. E por este motivo não o canto e muito menos me da arrepio na espinha.