Há muitos anos atrás, ainda o chato do José Nicolau de Melo - que no Facebook pede abraços, ainda que mudos - tinha orgasmos em directo com os passes do Bobó para o Ricky Owubokiri, a equipa de infantis do Benfica de Abrantes saiu do famigerado Campo do Bairro Vermelho para aquele que seria um dia épico, provavelmente o mais épico de todos os dias que o clube viveu.
Para minha fortuna, eu presenciei este episódio de perto, visto que era um dos 10 putos que ia na carrinha do clube, de estofos rotos, vidro partido, motorista – que era simultaneamente Director-Desportivo, enfermeiro, empregado de limpeza e churrasqueiro - e algumas letras do nome do clube desaparecidas, metamorfoseando-nos nos jogadores do “Sor Arates e enica”. Os outros 8 foram no carro dos pais, recebendo quilómetros a fio os conhecimentos futebolísticos da família – “Zé, tu agarra bem o gajo, não o largues”; “Paulo, quando chegares à zona da grande área, rematas, não passas a bola a ninguém!”; “Ouve o teu Pai, Toninho, não oiças o que o treinador diz, começas a correr, vais à linha e cruzas”, conselhos que o Mister Bragança detestava ouvir durante o jogo, quando os pais dos atletas, propositada e arrogantemente, cantavam, encostados à estrutura de ferro e banco de madeira e que os aprendizes atiravam fora como atiravam a Gorila de Laranja quando começava a azedar.
O caminho levar-nos-ia ao campo pelado do Vila Nova da Barquinha, terreno mítico - já na zona exterior da vila, apenas circundado por um recinto onde se assavam frangos, se bebiam toneladas de vinho e onde as velhas levavam o bigode a molhar os beiços na aguardente medronheira que sempre acompanhava as festarolas de Verão - por ter assistido “in loco” ao homicídio de um árbitro mais avesso às vontades do povo indígena, acabando pendurado por uma corda numa das balizas. Felizmente que esta história só veio à baila muitos anos depois, em conversa no Tonho Paulos – café abrantino onde a democracia junta degenerados, alcoólicos, drogados, pais de família e padres; caso contrário, ter-me-ia dado longos e trágicos pesadelos nas noites anteriores ao jogo.
A viagem tinha tudo para correr bem. O motorista surpreendentemente não estava bêbado; o mister, talvez por ter discutido com a mulher no dia anterior, não debitava prelecções sobre o jogo; os jogadores encontravam-se todos de boa saúde, sem lesões, embora o Coutinho aparentasse uma ligeira mazela no joelho esquerdo, provavelmente resultado da queda que dera na noite anterior no pavilhão do Pego e que, por motivos óbvios, não podia revelar, não fosse o Mister abdicar dos seus serviços por comportamento pouco profissional.
A este respeito, o Coutinho e outros (não me acuso), tínhamos (acuso-me) uma desculpa quase impossível de contrariar: Chalana, ele próprio, rei dos relvados e rei dos bigodes, fartava-se de jogar em pavilhões sempre que ia a Abrantes passar férias com a família da mulher Anabela, abrantinos de gema. No entanto, o Bragança, que era sportinguista, mostrava-se pouco solidário com as histórias de lendas benfiquistas, recusando comportamentos desviantes à boa prática da modalidade. Fosse o exemplo um Manuel Fernandes ou um Jordão e talvez a sensibilidade do Mister se potenciasse a um ponto de compreensão, mas isso são suposições que, a esta distância nos anos, abdicamos de fazer.
De modo que, tirando a suposta lesão do Coutinho, o plantel estava de boas saúdes e o ambiente na carrinha corria de feição. É verdade que o sistema de amortecedores da carrinha gemia de velho, e que as conversas eram entrecortadas por rápidos saltos no asfalto, o que até sabia bem porque dava aquela vertigem na barriga. “Vá mais rápido, Senhor Antunes”, gritávamos de trás, na esperança de mais uma lomba.
Se fosse possível voltar no tempo para dentro daquela viagem, talvez fosse difícil admitir que aquela gente ia para um jogo de futebol, tais eram os assuntos díspares que percorriam o ar por dentro da carrinha. Desde as invenções de uns em relação a supostos feitos sublimes com mulheres – havia quem jurasse a pés juntos, sem figas, que dois dias antes tinha dado um beijo à Carolina, diva do 5ºB, rapariga de faces rosáceas e aquilo que parecia ser o princípio de mamas, embora ninguém tivesse a certeza – à efabulação de corajosas aventuras, entre as quais, a melhor de todas, a que o Pires contava sobre ter comido, ao mesmo tempo!, amendoins, tremoços e um pastel de nata. Quando esta história foi contada, toda a gente se calou, até o treinador e o motorista. Era, de facto, um feito extraordinário, só ao alcance dos duros e todos os outros (confesso-me) sentiram aquela pontinha de inveja que se nos agarra e da qual não nos conseguimos libertar. Bem que eu queria ter sido o herói desta junção de sabores mas a sinceridade obrigava-me a admitir a mim próprio que o máximo que conseguia fazer era comer 5 carcaças seguidas com manteiga e tulicreme.
Se isto fosse um filme, o realizador traria ao público, em plano apertado, a cara do Rocha quando ouviu a história do Pires mas como isto não foi e não é um filme ninguém notou o movimento gástrico que fez o nosso avançado pedir para parar a carrinha 10 minutos depois. Continuámos no fingimento infantil de sermos adultos enquanto na rádio passavam anúncios de ourivesarias, mini-mercados e músicas do José Malhoa.
Foi só quando, a 5 quilómetros da Barquinha, o Rocha começou a meter as mãos à cabeça que alguém gritou para o mister: “Shôr Bragança, acho que temos de parar!”. A carrinha, que a esta altura ia a alta velocidade, uns 60 quilómetros/hora, começou a travar, a traseira guinou toda para o meio da outra faixa, e lá embicou para o meio do mato, entre um poste de electricidade e um pinheiro tronchudo. O ponta-de-lança abriu a porta corrida com as duas mãos, começou a correr, fintou dois arbustos e acabou a vomitar numa ponte que dava para uma horta. Escusado será dizer que as folhas dos pimenteiros levaram rega para dois anos. E abstenho-me de contar aqui os impropérios que a velha, dona do terreno, vociferou porque há coisas que devem manter uma certa discrição de palavreado.
O mister, responsável pelo jovem imberbe – ainda que goleador nato -, aproximou-se do Rocha, preocupado com a saúde do mesmo (mas também com a possibilidade de perder um activo de grande importância!) e perguntou-lhe: “Ó que caralho, Rocha, mas o que é que tu comeste hoje?”, ao que o avançado-centro, ainda esbranquiçado de cal e temeroso da reacção do treinador, respondeu: “ó shôr Bragança, desculpe-me, comi 3 pratos de feijoada”. Estávamos arruinados. O mesmo é dizer: estávamos fodidos.
Sem o nosso abono de família, melhor seria projectar uma táctica que nos permitisse empatar ou, vá – na melhor das hipóteses –, ganhar por um ou dois. “Goleadas, esqueçam”, gritava o mister, já esquecido das quezílias pessoais da noite anterior – em que, diriam os relatos posteriores, teria levado duas chapadas da mulher por ter sido visto no Tiagu´s Bar a apalpar duas venezuelanas com filhos – e totalmente focado nos objectivos da equipa.
O Rocha por esta altura mantinha-se calado, entregue aos suspiros, aos ais, aos gemidos semi-surdos, procurando convencer o estômago de que estava bem. Bocejava, e a cada bocejo tínhamos medo de que em vez de pimentos pintasse de feijões os nossos pés. Felizmente que o Rocha tinha gasto a tinta toda na horta da velha e já estávamos a chegar com a nossa carrinha ao terreno de jogo.
Parado o veículo, saídos os adultos, saímos todos com a nossa bolsinha das chuteiras debaixo do braço e, para não dar alento aos atletas do Barquinha que nos recebiam com olhares entre o medo e a raiva, metemos o nosso ponta-de-lança no meio de nós, e ninguém chegou a ver o ar de vómito com que ele entrou no balneário. Sentámo-nos nos banquinhos de madeira, pusemos os casacos pendurados em cima de nós e olhámos o mister com ar de preocupação. O Shôr Bragança sacou do seu papelinho das tácticas, cofiou a bigodaça, olhou o motorista (que era também Director-desportivo, empregado de limpeza, enfermeiro e churrasqueiro) e disse: “Ó Antunes, dá uma aspirina ao gajo!”.
De repente, levantou-se uma esperança naquele balneário com cheiro a suor, lixívia e roupa encardida: o Rocha afinal ia jogar. O Bragança leu os nomes dos titulares, enquanto ia entregando as belas camisolas vermelhas, uma a uma, e, quando o “9” voou para as mãos do nosso ponta-de-lança com hálito a couves e morcela, sabíamos que o dia estava ganho – a não ser que alguém acabasse com uma corda no pescoço. O Rocha ainda protestou: “mas a minha barriga, Mister…”, só que o técnico, avalizado nestas matérias, ignorou a frase e enviou-o para o terreno de jogo. Os misters sabem o que fazem. Levantámo-nos, abraçámo-nos em jeito solidário e paneleiro, gritámos “Benfica” e fomos para dentro de campo, onde fomos recebidos em apupos pelos bêbados e mães locais e com uns aplausos das famílias abrantinas que tinham levado os filhos.
O jogo correu de feição, ganhámos. Quando chegámos ao balneário, ao intervalo, todos bebemos chá verde quente menos o Rocha, que não merecia por ter sido pouco profissional. No fim, com as pernas presas de lama, frio e toneladas de cãibras, ouvimos, desinteressados, o shôr Bragança, que continuava chateado – não sabemos se com a mulher, se com o Rocha. Mas sorriu levemente. Afinal, tínhamos brindado o Barquinha com um 17-0, sem espinhas.
O Rocha? Pena ter comido aquela feijoada. Só marcou 14 golos.