quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Entrevista a Carlos Daniel - Primeira Parte

Sendo jornalista e amante do futebol, poderá estar atento, de uma forma geral, à blogosfera desportiva. Acompanha blogues de futebol ou é um universo que desconhece? Se sim, quais?
Não acompanho nenhum em concreto, por regra, mas estou atento a uns quantos, sobretudo de futebol, política e música. Nos de futebol, afasto-me sempre que percebo que o tom geral é de crítica oca ou clubismo doentio. É para o que já não tenho paciência. Nem idade.

A blogosfera é um espaço que permite um certo tipo de liberdade de que nem sempre o jornalista desportivo goza quando escreve em jornais nacionais. Há muitos jornalistas “camuflados” na blogosfera?
Admito que sim mas confesso que não sei, de facto. Às vezes deve saber bem poder dizer tudo o que se pensa.

Numa entrevista ao semanário “Sol” disse que os seus dois temas preferidos são a política e o futebol. São duas áreas com muitos pontos de contacto? Quem sai a ganhar com a mistura dos dois?
Ganha sempre o futebol, que é paixão genuína, que nasce connosco antes de darmos por isso. A política deve ser desapaixonada, racional. A clubite faz sentido (até a um certo limite), a partidarite (clubite na política) não faz sentido nenhum.

Vê alguma possibilidade real de a curto prazo se alterar o balanço de poder entre os media desportivos e os clubes de futebol? Doutra maneira, será possível que continuemos a viver esta realidade em que os jogadores vivem numa bolha e pior, os presidentes tampouco são questionados?
Não me parece fácil. Os dirigentes só falam nos momentos das vitórias ou então procuram cada vez mais os órgãos de comunicação dos próprios clubes. E todos os grande têm hoje jornais, revistas, canais de tv. O jornalismo tem de reagir a essa “informação amansada” e precisa de definir como, e depressa.

Uma ideia muito defendida por alguns jornalistas é a de que em jornalismo não deve haver emoção – que o profissional deve apenas relatar factos, ser “isento”, “imparcial”, frio. Isto faz algum sentido?
Faz, na análise e no comentário. Na narração, num relato (de rádio em particular, mas também de televisão), em directo, a emoção tem de fazer parte. Mas é possível ser emotivo e isento, equidistante, ao mesmo tempo. Disso não tenho dúvida, até porque conheço vários jornalistas que são.

Falemos do Benfica, que é essa a paixão deste blogue. A diferença na qualidade de jogo do primeiro ano de Jesus para os três seguintes passou muito pela ausência de Ramires – que defensivamente e na reacção à perda de bola era muito forte – ou há uma mudança clara de Jesus na forma como compôs a equipa, depois de ser campeão nacional?
Tem muito a ver com a capacidade dos alas e dos avançados nos momentos defensivos (de organização mas sobretudo transição). Os melhores conjuntos de Jesus foram o primeiro (com a capacidade de recuperação de Ramires e até de Di María) e o último (com a participação no processo defensivo de Lima e Rodrigo). Por definição, o modelo de Jesus (que ele constrói sobre o sistema 4x4x2 ou 4x1x3x2) é desequilibrado mas sempre ambicioso.

Qual foi o melhor ano, em termos de qualidade e competência no trabalho, de Jesus desde que está no Benfica?
O primeiro, quando fez depressa uma grande equipa. Tinha grandes jogadores mas apresentou trabalho e mudou o rumo do clube. No último ano aproximou-se, com a equipa mais equilibrada de quantas fez na Luz, mas frente a uma concorrência (Porto e Sporting) que não tinha metade dos argumentos do Benfica.

Jorge Jesus é o treinador certo no clube certo?
Neste momento é, que só pode ser positivo haver alguma continuidade no meio de tanta mudança. É um treinador competente, sem dúvida, teimoso até ao limite também, e que não muda nem nunca vai mudar no essencial. Já pôde sair por baixo (há um ano) e em alta (há uns meses) mas que optou por ficar, talvez sem prever o que aconteceria na pré-época. Esta época é um risco enorme, sobretudo para Jesus.

Concorda com a ideia de que Jorge Jesus é  simultaneamente um treinador de enorme competência, a nível técnico e táctico, e alguém cuja teimosia é capaz de pôr em risco todo o seu excelente trabalho? 
Concordo. Tem competências top, sobretudo no plano técnico-táctico, mas muda mais vezes por necessidade (Oblak por Artur, Rodrigo por Cardozo, p.e.) que por convicção. Costumo dizer que após tantos anos num clube grande mantém intactas as qualidades, que são muitas, mas também os defeitos.

Acredita que Jorge Jesus tem um conhecimento mais aprofundado do aspecto táctico do futebol do que, por exemplo, Mourinho, perdendo em termos de comunicação e valências motivacionais?
Não. Mourinho sabe tudo de táctica e treino, que é o essencial no futebol. Jesus é um apaixonado do jogo e do treino, um grande conhecedor, mas tinha de evoluir para chegar mais alto, concretamente ao nível da liderança e das relações humanas. 

Ao dizer que  "só trabalho não chega, é preciso qualidade"  o treinador do Benfica dá a entender que não passou por ele a contratação dos que chegaram nesta época. Não considera peculiar que não seja o treinador a escolher os jogadores que melhor se adaptem ao modelo de jogo que implementou no Campeão nacional e vencedor de ambas as taças?
Tenho curiosidade em sabe quem foram afinal – entre tantos – os jogadores que Jesus quis, que pediu ou avalizou, e os que não quis e lhe impuseram (se é que impuseram). Interrogo-me se um treinador campeão, que recusou propostas importantes, não faz valer minimamente a sua vontade, quem fará? E claro que Jesus está longe de ser o maior responsável pela estranha pré-época do Benfica.

Como compreender a contratação de um jogador como Luís Felipe (e, no passado, de jogadores como Emerson ou Cortez) por parte de um clube como o Benfica? 
Uma coisa é falhar na escolha de um jogador, que todos falham. Outra é escolher um jogador errado para uma posição na qual havia quatro opções melhores (Maxi, Sílvio a prazo, André Almeida e Cancelo). Isso não se entende.

É sabido que Eliseu é um “amor antigo” de Jorge Jesus (há algumas épocas chegou mesmo a afirmar em público que ou era Eliseu o eleito para a lateral esquerda ou não valia a pena contratar ninguém). Considera o lateral português a alternativa certa para assumir com qualidade inegável o lugar no 11?
Não duvido que vai ser titular, e que Jesus vai dar-lhe todas as oportunidades. Quanto ao que vai provar só o futuro o dirá, que já não é jovem e nem sempre foi defesa esquerdo. Mas neste caso acredito que Jesus, pelo que conhece do jogador, não se enganará. Nem faz sentido que se engane.

Imagine que era o treinador do Benfica - que sistema táctico base utilizaria (4-4-2, 4-3-3, outro) e sobre que modelo de jogo assentaria (linha recuada alta, pressão horizontal, vertical, posse de bola, transição rápida)? 
Boa pergunta. Não há sistemas melhores que outros, há jogadores que mexem com o sistema, pelos posicionamentos que os favorecem ou não. Gosto de ver dois avançados numa grande equipa mas isso não pode ser um dogma, depende da matéria disponível. O meu modelo preferido é de posse com profundidade, largura e objectividade, com iniciativa, num bloco compacto que é eficaz na reacção à perda de bola. Mas isso é o que querem quase todos. Decisivo é saber o que se consegue fazer em cada momento, o que serve melhor o interesse da nossa equipa, ser capaz de definir ritmos, de esconder fragilidades e exponenciar o melhor que se tem. 

Tendo em conta que o treinador do Benfica já disse que quer um guarda redes, um médio defensivo e um avançado, que jogadores pensa poderem ser bons reforços para o Benfica, capazes de entrar directo no onze inicial?
Há vários mas dependeria sempre da capacidade financeira. Parece-me um erro não se pensar num central de nível top, com Luisão a envelhecer e sem mais nenhum indiscutível (Jardel nunca será de eleição). O avançado tem de ser compatível com Lima ou Derlei e terá sempre o problema de manter Gaitan amarrado a uma faixa, o que me parece ser um erro persistente, ainda que Jesus dê finalmente sinais de que lhe vai permitir maior liberdade esta época.

Uma alteração táctica para um esquema com um meio campo mais preenchido poderia ser uma boa solução de contornar as saídas de jogadores importantes (especialmente no caso de Enzo sair) e rentabilizar os recursos disponíveis?
Sim, penso que poderia ser ensaiada essa alternativa. Duvido, no entanto, que Jesus o faça, que o jogar do Benfica é muito definido por posicionamentos que resultam do sistema, da estrutura definida e sempre mantida.

O que acha de um 433 com um médio defensivo (Amorim, Almeida, Fejsa ou um jogador a contratar) no vértice recuado e Enzo (se ficar) e Gaitán à sua frente?
Podia ser uma espécie também de 1x4x2x3x1, mas dependerá de haver Enzo e Gaitán. Fejsa é o mais dotado para a função de médio defensivo, que Amorim é hoje mais um médio organizador (ou de transição) e André Almeida será apenas uma alternativa (um suplente de qualidade, em linguagem directa).

Gaitán, desde que chegou ao Benfica, jogou a extremo e, no ano passado, apesar de partir da linha, experimentou zonas mais interiores. No entanto, nunca jogou como jogava no Boca, a segundo avançado, livre, tanto jogando no espaço em desmarcação como vindo buscar jogo atrás, criando desequilíbrios. Não terá Gaitán a ganhar se jogar como apoio a Lima (ou outro avançado) e não, como muitas vezes é pedido, a 10 (que nem sequer é posição no sistema de Jesus)?
A questão radica sempre no sistema em vigor, que Gaitán altera, uma vez que seria sempre mais um 10 lançador e de último passe que um segundo avançado na linha do que foram Saviola ou Rodrigo. Não duvido que Gaitan renderia mais (também em assistências e golos) mas só se Jesus quiser mexer nas dinâmicas. E se com Rodrigo, com mobilidade e pé esquerdo (penso em trocas posicionais), Gaitán permaneceu sobre a faixa, creio que acabará por se manter por lá. 

13 comentários:

Pedro Costa disse...

Que lufada de ar fresco no panorama blogosférico benfiquista. Dediquem-se mais a isto e menos aos tapadinhos que seguem o líder até ao fundo do poço.

Obrigado ao Ontem e ao Carlos por este bom momento de leitura. Saudações Benfiquistas.

Anónimo disse...

Obrigado Ricardo (também ao Carlos Daniel).
O Carlos Daniel "respira" futebol e fala um linguagem que todos percebem.
Abraço,
José Carlos.

Shadows disse...

Excelente. Um grande jornalista que diz o que pensa e não procura fazer "cócegas nos ouvidos" a ninguém.

Anónimo disse...

slb+1

Sou daqueles que nem acha o Carlos Daniel dos piores, no entanto não deixa de ser mais um que prai 50% do que diz é blá blá blá! As discussões com o Bruno Parolo Prata sobre quem tem o melhor blá blá blá sobre os triangulos invertidos, basculações, inversões de marcha, arranques a frio, etc, etc, é bem a prova que também gosta de muito blá blá blá! Vá lá não fala muito sobre a verticalidade no futebol e se calhar é também por isso que digo que não é dos piores. Um desporto que se joga na horizontal, como todos os desportos de campo, e ouvir alguns "paineleiros" falarem em futebol vertical é absolutamente ridiculo!

RG disse...

Excelente entrevista de uma das pessoas que melhor percebe o «futebolês» ! Isto sim é serviço público !

João Silva disse...

“Jesus é um apaixonado do jogo e do treino, um grande conhecedor, mas tinha de evoluir para chegar mais alto, concretamente ao nível da liderança e das relações humanas.”
JJ em termos defensivos é do melhor que há na Europa e penso que neste aspecto é mesmo mais competente que a melhor versão de Mourinho. Em termos ofensivos já não gosto tanto do estilo de JJ mas é , sem duvida, competente.
O grande defeito de JJ é mesmo esse, muita falta de qualidade nas relações humanas (quem não se lembra da dispensa do Quim pela televisão, por ex.), são frequente as declarações públicas menos próprias de JJ, ou seja, em termos de motivação não está entre os melhores. Não é o melhor trinador do mundo como afirmou no final da época passada.

“O meu modelo preferido é de posse com profundidade, largura e objectividade, com iniciativa, num bloco compacto que é eficaz na reacção à perda de bola. Mas isso é o que querem quase todos. Decisivo é saber o que se consegue fazer em cada momento, o que serve melhor o interesse da nossa equipa, ser capaz de definir ritmos, de esconder fragilidades e exponenciar o melhor que se tem.”
O seu treinador preferido deve ser Vítor Pereira.

“Como compreender a contratação de um jogador como Luís Felipe (e, no passado, de jogadores como Emerson ou Cortez) por parte de um clube como o Benfica?
Uma coisa é falhar na escolha de um jogador, que todos falham. Outra é escolher um jogador errado para uma posição na qual havia quatro opções melhores (Maxi, Sílvio a prazo, André Almeida e Cancelo). Isso não se entende.”
Não há razões lógicas para contratar alguém como Luís Felipe. Não sou profissional de futebol mas vi o jogador 15m contra o Marselha, as deficiências tácticas e técnicas eram tão evidentes que não podem ter passado despercebidas há equipa de scouting. Assim sendo apenas posso presumir que a pessoa que indicou o Luís Felipe é completamente incompetente.

Anónimo disse...

1x4x2x3x1....... Fónix......... Se contar com o guarda redes jogamos com 12! É inovador de facto!

José Moreira disse...

Este último anónimo é deveras brilhante.

Águia Preocupada disse...

Gosto do Carlos Daniel como profissional e além do mais é benfiquista.
É realmente um apaixonado pelo futebol e sabe bastante do tema.
É uma entrevista interessante e demonstrativa do seu saber.
Só que... E há sempre um mas, não resistiu a camuflar, a branquear e a defender colegas seus sem escrupulos! E também nunca o vi na televisão a mencionar sequer o "Apito Dourado"
A sermos honestos, que o sejamos em tudo... Né?!
Ah! E já esquecia que tendo ele um cargo de chefia, não enjeitou a contratação de um corrupto, seu colega jornalista de seu nome Tavares Teles, apanhado nas escutas a forjar uma notícia falsa para agradar ao dono,para comentador num dos seus programas!
Não me parece que isto abone muito a sua isenção!
Mesmo assim, infelizmente é do melhorzito que remos!

Anónimo disse...

Ó José Moreira, se estás a ironizar, das duas uma, ou és burro ou não sabes contar..... Ou das duas..... Duas!

José Moreira disse...

Não estou a ironizar não, porque não perceber que o 1x4x2x3x1 é incluir o Gr no sistema tático é tão básico que só pode ser genial.

Ricardo disse...

«Um desporto que se joga na horizontal, como todos os desportos de campo, e ouvir alguns "paineleiros" falarem em futebol vertical é absolutamente ridiculo!»

Moreira, julgo que menosprezaste o génio deste outro anónimo. São os dois igualmente brilhantes, não deixes ninguém de fora.

Ricardo disse...

Águia Preocupada, as acusações que aponta ao Carlos Daniel terão de ser respondidas pelo próprio. O que posso dizer é simples: esta entrevista pretende abordar futebol e não outros temas. E discordo de si: o Carlos é um óptimo jornalista, é um homem que conhece o jogo e, nada despiciendo, é um benfiquista. Merece-me todo o respeito.