Houve duas tragédias naquele ano de 1988: a morte da nossa cadela
o meu Pai agarrado ao focinho dela, em frente à lareira, o Eric Clapton cantava e chorava o filho num choro impossível de descrever. As chamas iluminavam as lágrimas do meu Pai e as orelhas peludas da minha Cocker já de olhos fechados para o mundo (a ver por dentro a morte).
e o meu Pai a chegar a casa, com o galhardete de um PSV-Benfica, agarrado ao cansaço de horas de autocarro e tristeza. A cadela ainda era viva, esperou para morrer depois para não o deixar sozinho a ver o lume.
Das duas vezes, o fogo foi a forma de não olharmos uns nos outros a pequena morte. Aquela que mata mais do que a grande morte, porque é feita de espinhos que se vão colando, sem aviso, à pele e só magoam no fim, quando já desistimos e choramos juntos.
Foram mortes que, agora à distancia cerebral, percebo como fundamentais na minha vida. Antecipavam a tragédia, como um livro que começa a ensanguentar-se na narrativa até ao esguicho vermelho e final. Ainda não tínhamos morrido e no entanto todos mortos: uma vez pelo Benfica, outra pela cadela. Ainda pensávamos que éramos eternos.
Três anos, dois meses e cinco dias depois (já Verão de 91, portanto), acordei uma vez aos solavancos pela cama, suado, em gritos de desespero. Era a morte do meu Pai e a minha e a do Benfica e a da cadela, todos juntos e mortos num final apoteótico no qual o que restava era uma sombra que pairava por cima das casas. Uma onda escura que levava os telhados de um lado para o outro e os consumia por dentro, as nuvens fechando-se numa concha de frio e chuva e os sorrisos das pessoas debaixo de toldos, sombrinhas, agasalhos, escuras evocações ao divino.
De todas as vezes em que quis aniquilar a tristeza atirei-me à contemplação do fogo. Quantas vidas viveram dentro de uns toros húmidos, de pinhas, de acendalhas? O meu Pai ainda hoje está sentado no banquinho a remexer a arquitectura que levanta fumo pela chaminé, há-de dizer - se o fumo entrar para dentro - que a lareira está a fumar mal, e nós, também sentados em bancos pequenos, a sentir o calor do fogo e as notas de uma música que não acaba, talvez de vez em quando nos lembremos daquela cadela com as orelhas peludas e olhos fechados, do quente que era estarmos todos juntos, do galhardete que ficava orgulhoso no meu quarto a dizer PSV-Benfica, da tragédia do Veloso, dos ensinamentos do Silvino, daquele equipamento todo vermelho, do quase-Diamantino e daquela memória que ficou da felicidade de ter sido lançado no espaço nos dois golos do Rui Águas no Estádio da Luz.
Ontem, Pai, vi-te no Estádio da Luz. Hoje só quero ir vingar as duas mágoas tão tristes com que chegaste a casa. Hei-de ver o Benfica ganhar uma final europeia por ti. E depois posso morrer e ficar para sempre, num limbo de vitórias do Benfica, no quarto anel onde tu circulas a beber copos com o Vítor Baptista.
7 comentários:
Soltei uma lágrima... saudações.
Achei lindo o texto, muito talento, apenas aspiro a metado do que escreves!
http://pantominocracia.blogspot.pt/2013/03/benfica-e-como-o-nosso-pais.html
Muitos parabéns por mais um belissimo texto...
«Das duas vezes, o fogo foi a forma de não olharmos uns nos outros a pequena morte. Aquela que mata mais do que a grande morte, porque é feita de espinhos que se vão colando, sem aviso, à pele e só magoam no fim, quando já desistimos e choramos juntos.»
...
Às vezes passo por aqui e entretenho-me a observar, como se espreitasse através das persianas do silêncio. Nem sempre concordo com a arrumação das palavras, mas também não é para isso que se "inventaram" os blogues - não seria, talvez, muito útil alinhar numa espécie de consensos mais ou menos bacocos, apenas porque sim!...
A discordância, porém, não implica rejeição e, depois, ao regressar - talvez parafraseando Mário Wilson, ARRISCO-ME e deparar com pérolas como aquela com que iniciei este comentário. Como é, afinal, todo o texto.
Um excelente fim-de-semana
Obrigado, e parabéns por tão belo texto. Também perdi um "fiel amigo", nas vésperas do ultimo Natal, o meu querido pastor alemão "Zion". Também estive em Estugarda (tinha na altura 21 anos), e fiz a viagem de ida e volta em autocarro. Sendo eu da cidade do Porto, posso confessar-te que ganhei um amigo em todos os companheiros de viagem. Apesar da derrota fortuita com o PSV, para mim foi uma viagem onde ganhei mais do que perdi...O Benfica para mim tem sido uma benção!
Fantástico!
Texto digno de um Benfiquista!!
Carlos
Enviar um comentário