sábado, 13 de abril de 2013

Os rapazes do brinco

Houve duas tragédias naquele ano de 1988: a morte da nossa cadela 

o meu Pai agarrado ao focinho dela, em frente à lareira, o Eric Clapton cantava e chorava o filho num choro impossível de descrever. As chamas iluminavam as lágrimas do meu Pai e as orelhas peludas da minha Cocker já de olhos fechados para o mundo (a ver por dentro  a morte).

e o meu Pai a chegar a casa, com o galhardete de um PSV-Benfica, agarrado ao cansaço de horas de autocarro e tristeza. A cadela ainda era viva, esperou para morrer depois para não o deixar sozinho a ver o lume. 

Das duas vezes, o fogo foi a forma de não olharmos uns nos outros a pequena morte. Aquela que mata mais do que a grande morte, porque é feita de espinhos que se vão colando, sem aviso, à pele e só magoam no fim, quando já desistimos e choramos juntos. 

Foram mortes que, agora à distancia cerebral, percebo como fundamentais na minha vida. Antecipavam a tragédia, como um livro que começa a ensanguentar-se na narrativa até ao esguicho vermelho e final. Ainda não tínhamos morrido e no entanto todos mortos: uma vez pelo Benfica, outra pela cadela. Ainda pensávamos que éramos eternos.

Três anos, dois meses e cinco dias depois (já Verão de 91, portanto), acordei uma vez aos solavancos pela cama, suado, em gritos de desespero. Era a morte do meu Pai e a minha e a do Benfica e a da cadela, todos juntos e mortos num final apoteótico no qual o que restava era uma sombra que pairava por cima das casas. Uma onda escura que levava os telhados de um lado para o outro e os consumia por dentro, as nuvens fechando-se numa concha de frio e chuva e os sorrisos das pessoas debaixo de toldos, sombrinhas, agasalhos, escuras evocações ao divino. 

De todas as vezes em que quis aniquilar a tristeza atirei-me à contemplação do fogo. Quantas vidas viveram dentro de uns toros húmidos, de pinhas, de acendalhas? O meu Pai ainda hoje está sentado no banquinho a remexer a arquitectura que levanta fumo pela chaminé, há-de dizer - se o fumo entrar para dentro - que a lareira está a fumar mal, e nós, também sentados em bancos pequenos, a sentir o calor do fogo e as notas de uma música que não acaba, talvez de vez em quando nos lembremos daquela cadela com as orelhas peludas e olhos fechados, do quente que era estarmos todos juntos, do galhardete que ficava orgulhoso no meu quarto a dizer PSV-Benfica, da tragédia do Veloso, dos ensinamentos do Silvino, daquele equipamento todo vermelho, do quase-Diamantino e daquela memória que ficou da felicidade de ter sido lançado no espaço nos dois golos do Rui Águas no Estádio da Luz.

Ontem, Pai, vi-te no Estádio da Luz. Hoje só quero ir vingar as duas mágoas tão tristes com que chegaste a casa. Hei-de ver o Benfica ganhar uma final europeia por ti. E depois posso morrer e ficar para sempre, num limbo de vitórias do Benfica, no quarto anel onde tu circulas a beber copos com o Vítor Baptista.



7 comentários:

Anónimo disse...

Soltei uma lágrima... saudações.

Anónimo disse...

Achei lindo o texto, muito talento, apenas aspiro a metado do que escreves!

http://pantominocracia.blogspot.pt/2013/03/benfica-e-como-o-nosso-pais.html

J disse...

Muitos parabéns por mais um belissimo texto...

andré maia disse...

«Das duas vezes, o fogo foi a forma de não olharmos uns nos outros a pequena morte. Aquela que mata mais do que a grande morte, porque é feita de espinhos que se vão colando, sem aviso, à pele e só magoam no fim, quando já desistimos e choramos juntos.»

...

Às vezes passo por aqui e entretenho-me a observar, como se espreitasse através das persianas do silêncio. Nem sempre concordo com a arrumação das palavras, mas também não é para isso que se "inventaram" os blogues - não seria, talvez, muito útil alinhar numa espécie de consensos mais ou menos bacocos, apenas porque sim!...

A discordância, porém, não implica rejeição e, depois, ao regressar - talvez parafraseando Mário Wilson, ARRISCO-ME e deparar com pérolas como aquela com que iniciei este comentário. Como é, afinal, todo o texto.

Um excelente fim-de-semana

Tomás/ L.B. disse...

Obrigado, e parabéns por tão belo texto. Também perdi um "fiel amigo", nas vésperas do ultimo Natal, o meu querido pastor alemão "Zion". Também estive em Estugarda (tinha na altura 21 anos), e fiz a viagem de ida e volta em autocarro. Sendo eu da cidade do Porto, posso confessar-te que ganhei um amigo em todos os companheiros de viagem. Apesar da derrota fortuita com o PSV, para mim foi uma viagem onde ganhei mais do que perdi...O Benfica para mim tem sido uma benção!

André Linhas Roxas disse...

Fantástico!

Anónimo disse...

Texto digno de um Benfiquista!!

Carlos