terça-feira, 5 de julho de 2016

Uma noite alemã na vida do Delegado Fagundes


Na véspera do Leverkusen-Benfica o Delegado Fagundes não pregou olho a noite inteira - uma dor que lhe subia pelas costas em jeito de queda de água só que ao contrário, um veneno sangue acima até à ponta da nuca, e outra, em refluxos, que lhe aquecia os órgãos até ao gargantil. Podia ser que as duas picadas - uma, consequência dos pesos brutos que ajudara a carregar até ao balneário do clube (equipamentos, chuteiras, toalhas, um conjunto de chávenas e bules, sacos de desporto, bandeirinhas e uns toros de madeira); outra, quase de certeza uma vingança do próprio corpo ao exagero alcoólico com que a si mesmo se brindara na noite passada. Parecia que as duas dores se tocavam no cocuruto do esférico craniano e ali se deixavam ficar, aos sapateados com o cérebro do pobre Fagundes.

Tudo isto aconteceu numa madrugada longa, noite que nunca acaba, enquanto a esposa ressonava o hino do Benfica, ou o que lhe pareceu o hino do Benfica, nervoso que estava a antecipar o jogo de mais logo. Não sabemos ao certo, e não queremos injustamente suspeitar das maleitas do sujeito, se aqueles lamentos que no dia seguinte acompanharam o pequeno-almoço de ovos e chouriço foram apenas fruto de uma hesitação-ansiedade ou se de facto ocorreram, graves, no corpo de Fagundes. Mas, porque ao relato do próprio tivemos acesso nos dias posteriores, podemos contar a confusão de sentidos que a demência nocturna espalhou pela mente do Delegado.

Foram horas de suplício, atirado para uma contínua escolha de jogadores e tácticas; substituições a meio do encontro; dicas a dar aos atletas; cálculos sobre a temperatura do relvado; o cheiro da grama; se estaria molhada ou seca; as dúvidas sobre o adversário; quem jogaria, quem não; se o bigode do Toni teria o aprumo suficiente para aquela noite de gala.

“É possível que entre com o Kulkov de início, ganho capacidade de ter a bola e agressividade no miolo, mas quero garantir que o jogo não cai num adormecimento de meio-campo, tenho de encontrar uma fonte de contra-ataque, vai o Paneira na ala e o João Pinto fica no apoio ao Yuran. Sim, mais coisa menos coisa é isto”

E - depois de decididas estas e outras, várias, questões técnico-tácticas de superior importância - punha-se a contar com os dedos os onze jogadores que faria alinhar no jogo.

“Então, temos: Neno, Abel Xavier, o Abel deixa-me na dúvida, aparece bem no apoio ao ataque mas tenho medo das investidas alemãs, pronto, então ponho-o mas se notar desequilíbrios tiro-o ao intervalo. Neno (e fechava o punho, só com o mindinho em riste), Abel Xavier, William, Helder, Schwarz…”

A mulher por esta altura atingia em estranhos sons o que lhe parecia clara e inequivocamente ser o refrão: “Seeeeeeeeeer Beeeeeeeeeeenfiquiiiiiiista é ter na alma…” e estragava-lhe a composição do onze – impossível raciocinar de modo metódico quando Luís Piçarra aparecia a interromper a prelecção do raciocínio. Desistia e acompanhava a música, fazendo pequenos compassos com a defesa toda do Benfica a tocar piano na barriga. Primeiro Neno, Helder e Schwarz, ao mesmo tempo, num tocar de jazz, forte e sólido; depois, só William e Abel Xavier, enquanto o dedo do meio se esticava por um bemol mais acentuado.

O sono pesado da esposa encontrava um novo refúgio e os sons acalmavam. Voltavam as dores de Fagundes e as dúvidas existenciais – umas e outras no meio daquele pensamento alucinante e o onze do Benfica que nunca mais se decidia, já estavam os jogadores cansados, sentados num balneário conversando sobre o tempo quando Fagundes finalmente se decidiu, agora mais ríspido e pouco disponível para roncos conjugais e dores provavelmente fictícias.

“Sem mais demoras: Neno, Abel Xavier, William, Helder, Schwarz, Paneira, Kulkov, tenho de ver se de manhã vou comprar o pão e o frango para o jogo dos putos. Três sacas de pão, espero que o Pereira tenha anotado o pedido, este gajo já no dia anterior a irmos jogar ao Tramagal deixou-me na mão, cabrão do bêbado, esquece-se de tudo. O puto Figueiredo tem uma lesão no joelho que não sei se vai dar para entrar de início, se calhar temos de meter o Chico, mas foda-se ficamos sem meio-campo, que o gajo só quer atacar e depois vêm os pais dos outros com as cunhas e os interesses e as ofertas de garrafinhas de medronheira. Qualquer dia cago nisto.”

O Delegado Fagundes, por mais que se compenetrasse, não conseguia finalizar o onze. Eram sempre problemas e assuntos prementes, lógicas e pensamentos que lhe vinham de mansinho naquela noite de dores e insónia. Levantava-se, acendia cigarros, fingia que tinha sede para sair da cama e ia abrir o frigorífico mas não escolhia nada, ficava só a olhar as coisas nas prateleiras frias: três pimentos, um pacote de leite, frango, uma garrafa de coca-cola, três minis Sagres, ketchup, mostarda e massa de pimentão. Queria ter fome para inventar ofícios, mas acabava por se abandonar, uma e outra vez, à cama onde ainda se ouviam gemidos e roncos de um sono que lhe pareciam, estaria louco?, a voz de ave canora do Hino do Benfica.

Deitava-se e olhava o tecto branco. À noite as sombras pintavam-lhe manchas redondas, escuras, que se assemelhavam a jogadores distribuídos por um campo de futebol e ele começava finalmente a regressar ao metódico reflectir de uma táctica ideal.

“Neno, Abel Xavier, William, Helder, Schwarz, Paneira, Kulkov, Rui Costa, Isaías, João Pinto e Yuran”

Ficou com as duas mãos completas e outra que lhe apareceu para confirmar o onze, só com o mindinho outra vez em riste para o tecto branco. Olhou o dedo, estranho e deformado, lembrou-se que era com aquelas mãos e dedos que teria de ir buscar a comida para os putos e guiar a carrinha do clube e lavar os equipamentos e preparar os grelhados para a festa da aldeia e depois, se ainda tivesse tempo, acariciar as mãos da esposa e pedir-lhe, com jeitinho, que cantasse o Hino do Benfica. Não a dormir, mas depois disto:




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