quinta-feira, 16 de junho de 2011

As minhas aventuras de leão ao peito

A minha primeira camisola como jogador federado foi - imagine-se - do... Sporting. Estávamos na altura (1990) em que, em Abrantes, o Benfica tinha a sua sede em ruínas e a filial (a 2ª a nível nacional) não se mostrava capaz de ter uma formação sustentada. Por outro lado, o Sporting - que a nível nacional se afundava num declínio profundo que ainda hoje mantém e de que muito dificilmente sairá - tinha um associativismo na cidade de grande entrega e dinamismo, também pelas mãos de Francisco do Carmo Silveirinha, honroso sportinguista, homem de brio, então dirigente do Sporting de Abrantes e... meu avô.

A princípio, foi-me difícil encarar a ideia. O meu Pai convencia os meus 9 anos a integrar os treinos de pré-época da equipa da cidade, ideia que me pareceu a todos os títulos notável, uma vez que os parques da cidade, os jardins, os pátios e os corredores lá de casa reclamavam não ser o sítio certo para eu exponenciar o meu futebol de camisola 10 do Valdo Cândido Filho.

O problema deu-se quando o meu Pai me explicou, muito calmamente para que eu não saísse aos berros pela rua abaixo, que teria de usar uma camisola feia de listas horizontais verdes e brancas. Não era possível a um menino de 9 anos ter de usar o mesmo traje daqueles que, no Estádio da Luz, eram tidos como rivais e que saíam invariavelmente da catedral vergados à força do Glorioso.

Usar aquela camisola seria não só representar os mais fracos como trair o Benfica e aquele "10" cosido à mão - com o "1" um bocadinho mais abaixo do que o "0" numa clara desatenção do meu Pai para as façanhas da máquina Singer. Seria trair o Valdo e todos aqueles que de duas em duas semanas se enchiam no Estádio para festejar o benfiquismo apaixonado. Que responderia a algum deles, se numa tarde soalheira me pusessem a mão na cabeça e me perguntassem: "então, miúdo, jogas no Benfica lá da tua terra?"? Que vergonha passaria, enquanto no relvado o Magnusson marcava golos e eu respondia, envergonhado: "não, jogo no Sporting"? Não são dilemas fáceis para a cabeça de um jovem jogador.

Foi por esses momentos tortuosos na minha vida que entrou em cena o Francisco, não sei se na condição de avô que quer ver o seu neto apenas e só praticar o seu desporto favorito, se na condição de dirigente, que, como bom sportinguista, quer roubar talentos ao rival. Talvez, anos mais tarde, Sousa Cintra tenha arranjado inspiração neste caso de roubo claro para as suas aventuras pelo plantel benfiquista. Mas não se enganem: não sou nem fui nunca um Paulo Sousa ou um Pacheco. Se é verdade que o Sporting de Abrantes me acenava com um contrato por objectivos, recebendo a cada jogo jogado uma sandes de mortadela e um joy de maracujá, não será menos assertivo e correcto afirmar que a mortadela muitas vezes estava no limiar do prazo de validade, o pão ressequido e o joy de uma temperatura natural que afastava qualquer necessidade pós-jogo de goles decisivos. Não, o meu ingresso no Sporting Clube de Abrantes deu-se, pura e simplesmente, por ausência de Benfica e, claro, por uma precisão evidente de exponenciar o meu futebol para além dos muros do pátio da minha casa.

Felizmente, descobri, logo nos primeiros treinos com os mais velhos, que de Sporting o clube tinha o nome, os atletas eram quase todos do Benfica e os poucos sportinguistas que pululavam pelo pelado eram tidos como pouco aptos para a modalidade, como é, aliás, evidente para quem jogue à bola num qualquer campo deste país.

Fiz a carreira que pude fazer, sempre entre a vontade de jogar e a apreensão de levar vestidos uns trajes entre o pijama e o fato de presidiário. A meu favor, tenho a afirmar que, frente ao Benfica de Castelo Branco, falhei um golo isolado frente ao guarda-redes, obviamente não por falta de qualidade do meu pé direito mas porque me seria impossível escolher uma cidade ao meu clube e naquele jogo eu fui dos albicastrenses mesmo que o meu treinador não tenha dado por isso. No fim, ganhámos, e eu acho que vi umas lágrimas escorrerem pelo leão rampante que tinha no peito, não no coração, que esse estava nos peitos dos adversários.

Por tudo isto, e mais ainda que não foi dito mas talvez sê-lo-á um dia que decida escrever as minhas memórias destes tempos tristes, compreendem a minha alegria de camisola "10" de Valdo Cândido Filho quando cheguei a casa e o meu Avô me disse: "O contrato está rasgado, és um jogador livre. O Benfica de Abrantes este ano tem equipa".

17 comentários:

Fred disse...

Fantástico!

Não só a paixão descrita mas a vida desportiva de um cidade de interior, tema que me é muito caro pois sou da Covilhã, onde cheguei a jogar um ano no Sport Covilhã e Benfica, embora, para pena minha, com pouco para contar.

Comecei a vir a este blogue porque escrevias estas histórias, estas aventuras pela infância; reparei que actualmente te dedicas mais ao momento presente do clube e menos a estes textos de grande fervor humano. Não tenho que escolher a ideologia do blog, como está claro, mas digo-te que prefiro este tipo de texto. Sempre foi a imagem de marca do Ontem e espero que volte mais vezes.

Um abraço.

Anónimo disse...

Enorme post, parabéns!

Ganzas disse...

Não sei como foste capaz de envergar esse pano de cozinha. Mais facilmente o xadrez do Boavista.

Bom texto.

Ten disse...

Isto e outros textos de outros blogues, como o Gordo ou o Constantino, deviam fazer parte do jornal do Benfica em vez daquelas crónicas insípidas que todas as edições trazem, uns textos de lambe-botas e gente sem quaqluer rasgo para a escrita. Isto são textos sobre o Benfica, têm chama, amor, são bem escritos, mexem com as nossas memórias.

Parabéns, Ricardo, (mais) um excelente texto. Da minha parte, agradeço porque me revejo muito no que escreves.

Ten

Constantino disse...

Modestia à parte, sempre consegui manter um nivel minimo de vestuário e isso valeu-me a honra de nunca ter vestido lagarto, o que irá sempre abonar a meu favor.
Mesmo assim, a primeira águia que enverguei ao peito (não de modo federado, isso nunca o consegui) não foi a do Glorioso da Capital, mas esse mesmo Glorioso cujo emblema te ofuscou em frente ao redes, o Glorioso Albicastrense.
Como albicastrense desterrado para terras algarvias, muitas foram as vezes em que corri atras de um esferico com a camisola do SBCB no lombo. Como a diferença no emblema era imperceptivel e a cor berrante mantinha as mesmas referencias RGB, o único pormenor que me denunciava era a publicidade dos extintos iogurtes "Yophil" na barriga (na camisola e dentro do estomago). Mas garanto-vos, numa altura de vacas magras, eu era olhado com inveja pelos outros putos que usavam a ticherte da robbialac... especialemnte por aqueles que ainda não sabiam ler.

PS - esta camisla do SBCB deve-se ter perdido entre mudanças de casa, mas foi vital para o meu benfiquismo, pois foi-me oferecida (ainda suada) por aquele que deve ser o grande responavel por eu ser vermelho, o Ze Russo, meu tio e à altura dos factos, director do SBCB.

Constantino disse...

Ah já agora (porque só vi o comment do Ten depois de publicar o meu),

Obrigado pela referncia Ten. Como sou extremamente humilde posso-te dizer que os teus elogios são perfeitamente justificados e que o Ricardo ao pé de mim é um fraquinho... ah ah ah ah

Abraço a ambos os dois.

Ricardo disse...

É só para dizer que estou a ter em linha de conta as vontades egoístas dos leitores e, como sou um bocadinho do contra, agora vão gramar com 3 meses de análises rigorosas aos paralelepípedos dos triângulos invertidos ao quadrado do Jesuas, extensas e analíticas críticas aos serviços prestados pelo Vieira ao Benfica e, claro, pancada de meia-noite no Roberto. Peçam mais textos destes, peçam.

Uns abracinhos especiais à Covilhã, a Castelo Branco e ao Ten, especialmente este por ter dado a melhor ideia que já existiu na blogosfera encarnada: destruir o Jornal do Benfica com textos deste blogue. Isso seria bonito, sem dúvida alguma, em especial nesta altura do ano em que é preciso muito jornaleco para embrulhar alimentos.

E não desconfiem do que o Constantino diz quando afirma modestamente que eu ao pé dele sou fraquinho. Por via das dúvidas, façam-me este favor: vão ali até ao

http://www.eltinonumerouno.blogspot.com/

e depois digam qualquer coisa.

Benfica é merda disse...

Foi o melhor que te aconteceu na vida, lampião de merda.

Constantino disse...

Eu aviso já, textos meus no jornal do SLB só se o começarem a imprimir em papel de cozinha ultra absorvente, porque se é para usar a enrolar baguetes de sandes club tem que ser bem absorvente que eu gosto cá pouco molhos a escorrerem-me braço abaixo, até porque maionese e ketchup juntos tornam-se peganhentos e com a tara que eu teho em dar beijinhos a mim próprio, não tardava e estava num qualquer SAP de antebraço nos beiços a pedir socorro ou uma folha de serrote de cortar ferro. Para urgências parvas já me basta o pé partido num workshop de golfe porque uma demente a 30 metros de mim resolveu experimentar o seu swing com as mãos besuntadas de protector solar. Ainda hoje tenno a palavra Callaway gravada ao contrario no pé, gentileza de um driver a 160km/h (como ele vinha a voar, façam voces as contas em milhas).

Dasse qualquer dia tenho que escrever qualquer coisa no el tino dedicada à Peña Tinista do Ontem vi-te no Estadio da Luz.

Abraço

Ricardo disse...

É uma ideia que tenho construído ao longo do tempo e que vem sendo concluída de forma brilhante, agora e hoje com este comentário do anónimo lagarto: os sportinguistas, regra geral (muita atenção: REGRA GERAL!), não têm sentido de humor quando se trata de bola e, especialmente, do Benfica. Levam tudo a peito, não vêem para lá de Almeida. Mas posso estar enganado. Provavelmente estou.

Constantino, tudo o que não seja um acordo especial com a peña para ver os textos de borla será pouco.

Constantino disse...

Ricardo,

O topo da ironia é adeptos de um clube que é uma anedota, não terem sentido de humor....

À borla? Já eu agradeço ninguem me cobrar dinheiro por eu publicar aquilo num blog publico e sem parental advisory (juro que não me lembro do nome disto em portugues)

Anónimo disse...

Ricardo, o teres tido a honra de envergar a camisola mais linda do mundo não é por acaso, é que tu, sme o saberes, és sportinguista. No fundo, lá no fundo (mas que se revela) tens esse lado de gente séria, honesta, de valores intrincados na sociedade, da bondade, do altruísmo, do orgulho em pertencer a esta raça humana sem complexos nem benfiquismos bacocos. És também tu, embora em menor grau, um adepto do que o Sporting Clube de Portugal representa: a supremacia dos deuses sobre os terráqueos.
Parabéns pelo texto, está muito bom, embora pudesse ter sofrido de algumas alterações primordiais, tais como a censura de alguns avessos comentários ao nome Sporting.

Sporting não é quem quer.
Sporting é quem pode.
Mesmo de Abrantes. Mesmo do fim do mundo.

Recebe este texto como forma de carinho e não de ofensa. E, por favor, não censures esta prosa. Basta o benfiquismo estúpido dos teus companheiros de clubismo. São, coitados, pequeninos e difusores de uma má lembrança do Portugal salazarento. À muitos anos que assim é, Ricardo. Procura um caminho mais certo para ti e para os teus. Sem vergonhas nem Barbas. Sem Vieiras ou Veigas. Um caminho da verdade e da honestidade.

E um abraço à Covilhã, também, Ricardo, ao Sporting da terra. Belo clube, esse, de gente boa, honesta, humilde. Gente sportinguista, no fim de todas as contas.

Não voltarei a comentar aqui, Ricardo. A censura não me sobrevive.

MM

Ricardo disse...

Com o novo acordo, é parental advisory à mesma. Eles agora estão a integrar no léxico o anglo-saxónico. Porque é cool.

Imitação de MM, não está mal, mas falta qualquer coisa. Mais ofensas ao Benfica. Foi muito brando.

João disse...

Estes sportinguistas têm uma mania que lhes sobe ao escroto. Ninguém pode falar nada que vêm no instante com parvoíces. Deixem as lamúrias para os vossos problemas de merda.

Bom texto. E eu sou daqueles que permite análises xpto aos sistemas tácticos do salvador Jesus. Esta época vai ser decisiva.

Armando disse...

Ricardo, quando se torna necessário abrir e arejar o armário onde guardamos os fantasmas passados, convém que seja feito na solidão, quando a culpa existe. Agora, convidar meio mundo para assistir, é quase pornográfico, não que o texto o seja, é divertido, ainda que o tal sentimento de culpa atrapalhe um pouco o resultado final. Como diria, vinte anos atrás, no limite da fanfarronice: “Nada para a entropia!”.


PS. No tal textinho atrás coloquei uma nota, antecipativa do futuro desportivo próximo do Benfica. Queres dar uma olhadela? Talvez para memória futura? Mais atrás, há a aquilo que considero o “nó górdio” do Benfica, o modelo de gestão. Estarei errado?

JD disse...

É impressionante como ninguem comenta a melhor parte do texto nem o melhor caracter da história: o Avô.

"O contrato está rasgado, ès um jogador de livre. O Benfica de Abrantes este ano tem equipa."

Só um Sr pode dizer uma coisa dessas.

Também eu tive que me encher de coragem e bravura para aos 5/6 anos confessar ao meu Avô que não era do "seu" Sporting mas do Benfica. Passou-me a mão pela cabeça e avisou-me:" o que importa é ser-se bom homem, e agora não podes mudar! Já fizeste a tua escolha."

Ricardo disse...

JD, Obrigado.

É tudo isso. É preciso ser muito grande, assim com maiúsculas, GRANDE, para ser assim. E ele era. Este foi o homem que fez do meu Pai benfiquista porque levava o filho à Luz só para ver o Eusébio. Ele via e queria mostrar ao filho.

Isto é um sportinguista digno. Antes, isto, este, é uma pessoa digna. Precisamos de mais gente assim, seja benfiquista, sportinguista, portista, ista ista...