Os anjos não têm sonhos, acordam e adormecem da mesma forma. Isso porque entram na noite ou entram no dia demasiado e sempre sóbrios. Comem gelados ao entardecer e limpam as asas com água de rosas. Afastam as nuvens com um pontapé e só não marcam golos porque no céu as balizas são proibidas - coisas do divino, deixemos assim.
Os anjos têm auréolas e pequenas luminárias na fronte descoberta. Lêem em silêncio e coisas decentes, sem maldade. À noite, enquanto não sonham, respiram pelas orelhas e as asas abanam quando os pesadelos que não têm fazem por aparecer. Dormem de olhos fechados para dentro, lendo em surdina o coração aos soluços e os afectos são gestos que conhecem quando se põem, em miradouro, sentados sobre o mundo.
Às tardinhas, os anjos evoluem e mudam. Conhecem tascas e lugares obscuros, concubinas, tavernas, sítios ilegais. Nunca bebem, fodem ou maltratam borboletas que se passeiam voando pelo etéreo. Porém, pensam. Devagarinho e com palavras simples. Observam e depois concluem. Naturalmente, concluem.
Os anjos nunca tomam decisões e raramente discutem as conclusões a que chegam. Antes divergem, tergiversam, agiotam. Fazem muitas perguntas, os anjos. Querem saber, conhecer as outras nuvens e os outros lábios de sangue. Nunca beijam mas têm vontade de ver as línguas e a volúpia dos palatos. Os anjos não fodem mas também não saem de cima.
Quando lhes chega a fome, preferem conhecer os nomes da fome. Compram, a troco de umas quantas carícias imberbes, o conhecimento da fome e seus derivados. Alugam sabores e memorizam ingredientes. Os anjos comem a vontade dos outros, a sua sabedoria e os seus encantos. E encantam-se. Deslumbram-se com o que os outros dizem, quase querem agarrar aquele sentir de coisa vivida. Mas logo se lembram de que têm asas feitas de ar e coração aos tropeções pela vida ingrata.
Muito vociferam os anjos, quando se juntam. Encontram-se todos a meio caminho, entre os fumos tóxicos de uma cidade nublada e o rosa-manhã de um acordecer. Os anjos sabem que não existe a palavra "acordecer". Isto porque lêem não nas entranhas-entrelinhas do imaginário mas nas coisas concretas de um dicionário-revolta. Os anjos revoltam-se, muito e sempre, contra tudo e contra nada. Os anjos não sabem contra o que se revoltam.
Ontem li um anjo numa casa de penhores. Estava belíssimo de ser lido: os olhos revirados para o tecto, asas soberbas, pezinhos de veludo, coração adormecido, boca em êxtase, feito boneca de porcelana - ou insuflável, depende dos deuses -, dedos curvilíneos, cheiro a pó de ouro e madeira antiga. Circuncidado nos extremos, como um bom judeu deve ser. Tinha o joelho macerado, resultado de um festejar de golo mais exuberante nos jogos em que, à falta de mundo visível, ele programa com os amigos anjos, todos de uma falta de emoções que emociona.
Li-o e comprei-o. Pu-lo no móvel da sala, presente, hirto e mudo. Amo o seu silêncio sepulcral. Aos que nada têm a dizer é deixá-los assim, belos e confusos, na ternura da existência. Mostrei-o aos amigos, disse: "olha que belo anjo tenho aqui", e eles aplaudiram, deram-me dinheiro por ele, disseram-me que tinha, de facto, adquirido um anjo de grande exaltação decorativa. Corei. E ofereci-lhes um Carlos III.
Os anjos, bonitos ou feios, não merecem o Benfica.
3 comentários:
Conheço anjos parecidos com os que descreves. A diferença é que não pensam nem observam - limitam-se a concluir. Tudo neles é reflexivo.
Precipitam-se, coitados, erram e arrependem-se. Mas arrependem-se sempre demasiado tarde e sem nunca o reconhecer. Como não observam nem pensam, voltam a concluir erradamente. E voltam a arrepender-se. E tornam a concluir. E arrependem-se novamente. E concluem. E arrependem-se. Concluem. Arrependem-se.
E entram num loop viciante do qual apenas um tiro nos cornos os poderá libertar.
Algures entre o cansaço e o desejo insaciável de volúpia (golos a torto e a direito) encontro-me... queria não pensar nem me revoltar... mas o que eu quero mesmo é o nosso Benfica de Volta... o Benfica que luta sem medo e que tem os Tomates do Tamanho do Mundo... é aquele Benfica que olha nos olhos os desvalidos e pervertidos e os recolhe numa catedral de sonhos e ali naquele momento tudo faz sentido, porque todos nos reconhecemos Um, só pelo prazer de estarmos de mãos e corações acesos... é uma coisa do caralho, chamo a isso futebol coragem, futebol respeito incondicional... bem é só!!!!
Bonito. E aplicável em muitos contextos. Abraço.
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