domingo, 18 de novembro de 2012

Numa bolina ...


Nos anos negros do Benfica, há uma época que não esquecerei, 97/98. E se a não esquecerei não tem a ver com títulos conquistados, mas com experiências vividas.

Foi uma época em que o nosso plantel misturava a excelência felina do Michel Preud'homme, a classe tranquila do Carlos Gamarra, o génio de João Pinto, a imprevisibilidade do Karel Poborsky, a força demolidora do Brian Deanne, a veia goleadora de Nuno Gomes, a resistência infindável do coveiro Amaral, o petardo do molengão boliviano Sanchez, com uma quantidade inacreditável de cepos internacionais como o Paulo "jogava com o Jardel" Nunes, o Ronaldo "falso-lento muito lento" Guiaro, o dorminhoco El-Hadrioui, o caceteiro Tahar, o carteiro Pringle, um romeno aciganado a caminho da tripalhada de nome Pão duro, o ucraniano Cão da Aurora,  o exterminador implacável, ou pelo menos o gémeo dele Taument.

A estes juntavam-se as "vedetas" da formação: Edgar o homem das noites no Mussulo, Hugo "sou muita bom" Leal, Bruno Caires, que primeiro que mexesse uma perna tinha que se pedir um requerimento autenticado em papel de 25 linhas, o Bruno "corro sempre em frente" Basto, o José "Soneca" Soares, um lateral direito muito fraquinho de nome Sousa que só fez carreira por ser familiar do Sousa do Porto, o Paulo "hei-de voltar daqui a 15 anos" Lopes, além de cepos nacionais como o Jorge "sou alto mas não tenho jogo de cabeça" Soares, Tiago "o homem que tinha medo de voar para a Madeira", Jordão "fui contratado ao Estrela da Amadora porque o Abel Xavier e o Calado tiveram sucesso", Luís "será que sou jogador da bola só porque tenho pé esquerdo ?" Carlos, e mais umas quantas porcarias.

Obviamente que entre tanta qualidade e tanta falta dessa mesma qualidade a equipa era uma verdadeira montanha-russa de emoções. Para enquadrar a situação, Damásio depois de um final de época penoso, decide despedir o Manuel Zé à quarta jornada, salvo erro, depois de um primeiro jogo fantástico 4-0 ao Campomaiorense e três maus resultados, derrota em Setúbal, empate em casa com a Académica e derrota nos arcos com o Rio Ave. Além disso, opta por demitir-se convocando eleições antecipadas. Vale e Azevedo que pouco tempo antes tinha sido cilindrado por Damásio ganha as eleições com a ajuda da imagem do António Sala e perante uma turba que considerava o campeonato perdido à 4.ª jornada na véspera de receber os lagartos.

Com Vale e Azevedo entra o grande sornas, isto é Graeme Souness, que começa a importar ingleses para a equipa - Minto e Deanne foram os primeiros e como até foram mais-valias iriam abrir a porta à merda que viria na próxima época - Charles, Thomas, Harkness, mas isso já são contas de outro rosário. Apesar da substituição de treinador, o que é certo é que a equipa fez uma primeira volta terrível somando 4 derrotas e 6 empates em 17 jogos.

Não sei porque carga de água, até porque nada fazia prever, com aquela primeira volta tenebrosa, mas num sábado, estava eu no Estádio da Luz provavelmente para ir ver um jogo de basquetebol, quando sou desafiado pelo R. a ir até Campo Maior. E aí começaria a minha temporada atrás do Benfica por esse Portugal fora. Mas o jogo de que quero falar, pela ilusão que constituiu na altura, é o jogo de Guimarães. 15 dias antes, em mais uma deslocação memorável, tínhamos interrompido uma série de 7 vitórias consecutivas com um empate no São Luís, mas a vitória perante o Chaves reforçou a nossa convicção em ir a Guimarães.

Nesses tempos, os jogos ainda eram ao Domingo à tarde, às 16 ou 17, não tenho bem a certeza. Assim sendo, reunimo-nos, eu e o R. às 11h30 para fazer uma viagem nas calmas. Mal sabíamos nós que o carro, que até era da empresa, haveria de partir o motor ali na zona entre Santarém e Torres Novas. É preciso azar, o carro começa a deitar fumo por todos os lados e deixa de funcionar. O stress começaria aí. Se ligar para o seguro já é uma seca, imaginem o que era estar a ver o tempo a passar e ninguém atender do outro lado por ser Domingo. Mas o problema não foi só o esperar, o problema é que a mulher do seguro queria que o reboque nos trouxesse de volta a Lisboa.

Entretanto chega o gajo do reboque, um tipo 5 estrelas, maluco da cabeça e da velocidade. Põe o carro em cima do reboque, e começou a contar-nos as suas histórias de transportes de carros avariados e/ou  acidentados. Ora segundo ele o problema é que a malta andava sempre numa ganda bolina e depois pumba, espetavam-se que nem gente grande. E a cada história que nos contava falava do pessoal que ia na bolina, sempre na bolina. O que é certo é que lá nos levou até a uma oficina em Santarém que tinha associado um stand de aluguer de carros.

Depois de uma boa meia-hora a convencer a mulher do seguro que tínhamos uma reunião de trabalho no Norte nessa mesma tarde e que precisávamos de nos pôr a caminho, lá saímos do stand, já passava da uma da tarde, com um Clio de 55 cavalos. Não sei se influenciados pela bolina do gajo do reboque, o que é certo é que esse Clio parecia um avião a galgar quilómetros na auto-estrada. Qual piloto de fórmula um, o R. colava-se no cone de ar dos BMW e dos Mercedes que aceleravam e com o conta-rotações permanentemente no red line, o Clio batia recordes de velocidade.

Depois de passarmos no Freixo, ali ao pé das Antas, buzinámos aos tripeiros mesmo sabendo que eles não estavam lá, sim porque nisso nós não facilitávamos, pois se era para buzinar, buzinávamos, estivessem eles lá ou não, afinal de contas era uma questão de princípio, e acompanhámos com uma modinha dedicada ao porco-mor. Estávamos entretidos na cantiga e nas buzinadelas e nem reparámos que apesar da subida ter várias faixas, tinha uma curva relativamente apertada logo no início e eis senão quando eu dou um berro ao ver um carro que ameaçava entrar pela minha porta adentro, isto apesar do condutor se manter na faixa dele. Passado esse susto, em que o coração pareceu querer saltar do peito, mas como continuávamos com uma bolina dos diabos, em menos nada chegámos a Guimarães. Aí nasceu o meu desprezo por esses gajos, pois ao chegar com os cachecóis de fora, um filho da puta dum vitoriano, aproveitando a confusão, roubou-me o cachecol.

Mais uma vez, as coisas pareciam que não estavam de feição, pois se tínhamos conseguido chegar a horas, eis que ficava sem o meu cachecol preferido que em tantas vitórias me tinha acompanhado. Atacámos as bifanas e as bejecas, pois nem sequer tínhamos almoçado e lá entrámos no estádio. O jogo foi difícil e parecia que abdicaríamos definitivamente do título com mais aquele empate a zeros. Mas eis senão quando, a um minuto do fim, o boliviano prega uma bojarda de fora da área e a bancada por cima da baliza explode em alegria:

"Goooooloooooo!!! Inchem filhos da puta, mamem aí porcos do caralho. Benfica, Benfica, Benfica"

Ainda estávamos na corrida. Corrida essa que terminaria ingloriamente uma semana depois com uma derrota caseira frente aos axadrezados. Mas nesse momento e apesar da primeira volta desastrosa, tudo parecia possível, o título estava ali tão perto. Na verdade não estava e mesmo que tivéssemos ganho todos os jogos até ao fim não teríamos sido campeões. Mas a esperança era algo que possuíamos. E nesses que são conhecidos como os anos negros, quando o Porto foi à Luz para fazer a festa do título, saiu de lá com 3 batatas no bucho, pois se é verdade que iam ser campeões, também o é que na nossa casa não festejavam.

A viagem para baixo foi uma festa, pois enquanto fazíamos as contas que nos permitiriam ser campeões, voltámos a pôr os tripeiros no lugar deles com mais umas buzinadelas e uns insultos. Eu sei, era uma estupidez, pois nem eles nos ouviam, eles é que estavam em primeiro lugar e não havia justificação para tal comportamento nem daí poderia advir nada de positivo. Mas vivíamos numa ilusão que dificilmente consigo ter hoje em condições muito mais favoráveis. Claro que à vinda para baixo lá se teve que malhar umas sandes de leitão na bomba, pois não havia tempo para fazermos uma visitinha à Mealhada.

Infelizmente, a carta branca dada ao grande sornas no final da época, viria a destruir a equipa principal e a formação, com aquela ideia peregrina de apenas uma equipa por escalão, enquanto o presidente começava a impor uma cultura personalista tão do agrado dos actuais dirigentes.

Não sei se é de mim, se é dos muitos anos a penar, mas tenho pena de ter perdido aquele sentimento, aquela ilusão, aquela crença, aquela confiança, aquele benfiquismo puro e inocente que era capaz de acreditar que o Benfica poderia dar a volta a um descalabro como o de Vigo, fazendo as contas aos minutos dos golos que nos permitiriam inverter o resultado e conseguir uma passagem histórica. Essa crença sem limites já não a tenho, talvez porque a dura realidade já várias vezes me abriu os olhos. A verdade é que recordo essa época com alguma saudade, não pelos resultados, mas pelos momentos vividos e o pelo sentimento de esperança em que tudo era possível.

PS - Eu sei que não são tripeiros, mas portistas, infelizmente essa era a visão, e tanto era que todos se lembram da famosa canção "em cada tripeiro, há um ...".





5 comentários:

POC disse...

Fantástico. Adorei B Cool, grande prosa.

Também eu já vivi a esperança eterna. Hoje, infelizmente acho que tende a desaparecer. O futebol está diferente, não sei bem explicar.

Essa equipa tinha jogadores de nível mundial. Preud'Homme e Gamarra na defesa é qualquer coisa de inexplicável.
Se Preud'Homme é o melhor guarda-redes da história do futebol, Gamarra foi dos jogadores mais "underrated" que já vi. Um hino ao futebol este senhor.

Um grande abraço. Sempre, Sempre Benfica.

Vitto Vendetta disse...

Sem palavras! Ainda hoje faço isso, quando passo o freixo :)

F.L. disse...

Também vivi esses tempos. Tudo agora é menos intenso. Algo se foi e já não volta. Vi o jogo com os axadrezados no Estádio da Luz.O Benfica perdeu aí a hipótese de ganhar o campeonato depois de uma das maiores roubalheiras que já vi dum biltre vestido de arbitro. Era a corrupção no auge. Só uma nota: S.Minto é já do tempo do Damásio.

Unknown disse...

@FL
Tens razão, até porque foi sutituído pelo harkness, mas o bom desempenho dele levou a essa importação de cepos e de outros não tão cepos mas que pouco acrescentaram: pembridge e saunders.

Anónimo disse...

o jogo na Luz com o boavista continua a ser a minha pior memória futebolística.
casa cheiinha (e na altura o n.º de almas que isso significava) a entoar os nossos hinos. entrei cedo no estádio, por isso foi um crescendo de emoções que quando o árbito apita para começar o jogo já estava em ponto de rebuçado com a certeza que íamos ganhar 15 a 0. Jé não me interessava se o souness era mau e se os bifes vinham para cá de férias, só via a liderança numa altura crucial do campeonato.
3 minutos depois, paulo madeira tropeça nele próprio e levamos a primeira de 3 batatas.
até hoje não consigo gostar do homem (e ouvi dizer que é gajo porreiro).
obrigadinho pelo post.

p.s. - é bom pensar o Benfica e manter um espirito livre e critico (racional e objectivo). mas não devemos perder o sentimento, venham mais destes posts, saudosistas e por isso optimistas, mais que não seja na mistica!