domingo, 29 de setembro de 2013

O benfiquista Abílio

19:43, semáforo vermelho na Praça de Espanha. Vemos de cima, com câmara panorâmica. À esquerda da imagem, filas de carros amontoam-se uns nos outros, junto às árvores. Esperando. À direita, saem avançando devagar, depois acelerando outros carros. Contornam as curvas de passeios, levam luzes, cai a noite. Para onde irá esta gente? Dentro de 4 ou 5 horas, a Praça estará entregue a viajantes solitários, esporádicos, nocturnos. Agora não. Tudo cheio e cansado. Cada um dos humanos sentados na sua casa de rodas leva o coração e a vida, a tristeza e a esperança, fazendo pontos de embraiagem, depois seguindo em segunda, terceira, segunda outra vez, terceira, quarta. E a quinta, a necessária e urgente quinta, que os leve ao sonho, onde está?

Olhos desfocados no horizonte de um céu que ainda tem rosa e lua a rebentar, luzes difusas de casas que abriram cozinhas para o mundo, Abílio espera pelo verde enquanto ouve o hino da Taça dos Clubes Campeões Europeus - chama-lhe sempre assim, detesta o novo acordo ortográfico e as estrangeirices. Sobe-lhe a música dos pedais às pernas, dos joelhos ao estômago, do peito aos olhos. O narrador anuncia: «As equipas estão alinhadas no relvado, o árbitro suíço está vestido de amarelo, o Estádio está composto. Diria um pouco mais de meia-casa. Jorge Fonseca, o que achas?» e o Jorge Fonseca dirá, com os pés no terreno, que talvez esteja menos de pouco mais de meia-casa e que houve uma homenagem a um antigo jogador do Benfica, devidamente premiado com uma medalha por parte do Presidente que «desceu até ao relvado».

Nada disto Abílio ouviu, perdido a focar uma marquise onde lhe parecia que estavam os seus pais e avós, a casa antiga que o tinha criado, a lareira grande com bancos dentro, sacas de batatas e pimentos vermelhos metidos em caixas de cartão com imagens de morangos do lado de fora. Vivia-se bem naquele tempo, poucos luxos é certo mas talvez houvesse uma dignidade entretanto desaparecida na confusão da cidade de luzes e marquises, semáforos, o som do motor, o táxi a debitar chamamentos com vozes de uma mulher a perguntar latitudes. Qual a latitude das saudades? 

O verde apareceu, Abílio carregou no acelerador, levantou a embraiagem, pôs a mão na primeira e pensou que o Benfica tinha de ganhar aquele jogo. Ia a fazer o 11 na cabeça, perdendo-se sempre no lateral-esquerdo e nos médios, sem saber se era o brasileiro que tinha chegado se o sérvio que era muito bom, quando viu uma mão acenar-lhe. É um jogo curioso, o de Abílio, esse de tentar concluir pelo menos três factos sobre a pessoa antes de ela entrar no carro. Há anos que faz isto, surpreendendo-se sempre com a percentagem de acerto. Abílio procura adivinhar três características sobre o seu cliente antes que o cliente abra a porta da sua viatura: profissão, clube de futebol e estado civil. As pessoas têm luzes sem se aperceberem.

Desta vez, porém, Abílio ia inundado de afectos e saudades. Tinha a infância toda no colo e um jogo do Benfica na rádio. Não fez o exercício, limitou-se a parar, esperar pela escolha que o cliente faz da porta a abrir - sempre mais interessantes os que decidem ir a seu lado em vez do refúgio dos lugares traseiros -, ouvir as latitudes - sempre as latitudes -, assentir com um gesto robótico, dizer que "sim, senhor" e seguir viagem por entre as ruas de Lisboa, que apesar de tudo e dos anos ainda o surpreendem pela variedade de becos esconsos, linhas tortas, probições de sinais, belezas que encontra sem aviso nem alertas. O Senhor Figueiredo escolheu refugiar-se, para Abílio um alivio. Podia ouvir o Benfica, lembrar-se do arroz de tomate da mãe e ir estando atento ao telemóvel não fosse a ex-mulher ligar-lhe num assomo de ternura. A verdade é que Abílio tinha pena de não poder ver o Benfica, de não poder ir ver se o refogado já estava no ponto para pedir à mãe o privilégio de atirar o caldo de tomate ao encontro das cebolas amolecidas, de não poder voltar a casa e ter uma pessoa à sua espera. Eram 12 horas por dia enfiado no cubículo, intervalos espaçados para um cigarro e almoço. O resto dividir espaço com desconhecidos, receber dinheiro, dar moedas, dizer "Bom dia", depois "Boa tarde", já sem chama "Boa noite". 

«Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo, golo, golo, golo, golo, golo, goooooooooooooooooooooooolo, Taca, Taca, Taca, Taca, Taca, Taaaaaaaaaaaaaaaaaaaaacuaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaara, Benfica, golo, golo, golo, golo, goooooooooooooooolo, Enzo flectiu na direita, fintou um adversário, deixou em Maxi que cruzou para a área e Cardozo finalizou de cima para baixo, golo, golo, golo, é goooooooooooooooolo do Benfica!». Foi desta forma que Abílio recebeu da rádio a bola no peito, esperou pela gravidade e rematou para as redes. Gritou, gritou muito, tudo, gritou o mundo contra os vidros dianteiros, contra os semáforos e luzes e prédios e praças e becos e carros, contra os Bons-dias, os Boas-noites e as Boas-tardes, os jogos de adivinhação sobre vidas dos clientes, as saudades do arroz de tomate, das ternuras da ex-mulher, dos insultos das pessoas, das moedas do bem e do mal, dos trocos. Ia passando tão perto do golo, seguindo Segunda Circular adentro, em frente à Luz, que sentiu ainda a maresia do cabeceamento de Cardozo, o vento que a bola levou até à baliza, as pernas dos adeptos, os braços dos adeptos, o grito dos adeptos ecoando pelo Estádio. 

Não tinha cachecol, agarrou-se ao pequeno galhardete que tinha agarrado ao retrovisor, beijou-o, soltou impropérios, esmurrou o ar tantas vezes que os átomos em cima do volante acabaram estatelados contra o vidro da frente, cantou: «BENFICA, BENFICA, BENFICA, BENFICA, BENFICA». Foi só depois, muito depois, 2 minutos e 43 segundos depois (eternidade do golo), que se lembrou do cliente que levava no carro. Um senhor aprumado, bigode aparado, elegante, rindo-se muito e fazendo com o punho direito um sinal de comunhão e felicidade. Foi o dia em que Cosme Damião andou pela primeira vez num táxi.

7 comentários:

mnlopes disse...

Tanta ficção... Onde é que já se viu, o Maxi saber cruzar uma bola?

luis disse...

Do 1º para o 33º o bigode aparado faz toda a diferença:)

Imagino que goleamos de 1-0, brilhantemente.

Anónimo disse...

no tempo do cosme damião os carros tinham radio e passavam jogos da liga dos campeões? Bebe merda fdp lol

Ulrich Haberland disse...

Ricardo, sempre que publicas um destes teus mini-contos eu delicio-me gostosamente a lê-lo e depois posso apenas agradecer-te. Sinto que é pouca retribuição mas é o que posso fazer, por isso muito obrigada por mais este bocadinho de Benfiquismo literário.


P.S.- Já te disse que és escritor e dos bons? Publica lá qualquer coisa para o pessoal poder guardar na estante em casa e mostrar às visitas ;)

luis disse...

"Pau e bola" na camisola, nesta caixa passam uns anónimos com antenas na cabeça. Todos dias tens cá visitas cobertas de interesse.
Se os anónimos não aparecerem até acho estranho. São cabeças que parecem jardins com flores, bonitas hastes, conteúdos cheirosos. Isto nem tinha piada e só por isso, julgo que o porteiro desta tasca deixa entrar gente que cheira mal dos sovacos.
Então este anónimo talvez não saiba que o 1º, o Sr. Cosme já andava de metro, tinha pombos correios para comunicar, não usava ligas mas era um campeão.
Pode ser um filho do porto, pensei eu... Aconselha a beber merda, deve ser a sua bebida preferida.
Sem anónimos o que era do Benfica??
Talvez com um melhor conhecimento das pessoas no anonimato...as escolhas para os últimos presidentes fossem outras.

20 anos a Relatar vitorias para o Sr Damião... ou um anónimo a espera dum foguetão...

Ricardo disse...

Muito querida, Ulricha. Obrigado e um beijinho.

luís, geralmente atiro os anónimos todos para o caixote - são 30 a 40 comentários que tenho de apagar por dia. Insultos, tonteiras, insinuações burras, parvoíces, paranóias, conspirações, vieiradas. Quase todos instrumentalizados pelas equipas do Benfica que tratam da internet. Gominhos da Silva, Tiago "Vendo-me" Pinto, Pedro "adoro lamber escrotos" Guerra, e outras figuras macabras do mesmo género.

Este anónimo das 02:45 deixei passar por uma questão de sociologia vieirística. As pessoas têm de perceber o nível cognitivo de uma larga maioria de apoiantes de Vieira. É o nosso bibelot, digamos assim.

luis disse...

"Bibelot" que coisa mais linda da nossa terra.

Força camarada, pelo nosso Benfica, dá asas a tua imaginação.

Nunca é demais lembrar:

"As pessoas passam e o nosso Benfica fica".