A facilidade com que se engavetam preconceitos continua a fascinar-me. O recorrente numa sociedade podre como a nossa é inundar o desporto - sejamos sérios: o futebol - de conceitos fundamentalistas por parte de gente que ou não entende o fenómeno ou tem dele uma visão distorcida, ignorante e não raras vezes maldosa.
Há os que acham que ser intelectual é, além de ler umas coisas do Russell ou passar os olhos por umas páginas do Proust, dizer mal do futebol. Que é para selvagens, bestas, mentecaptos mentais. Sentam-se de perna cruzada, o cigarrinho em riste para o tecto na mão de pulso bamboleante num bar cool em Lisboa e dissertam juntos sobre a felicidade que é não pertencer a essa horda de desordeiros. Dissertam sobre um assunto que não entendem, não querem entender e fazem de tudo para que ninguém lhes apareça à frente com uma explicação. Sentam-se de costas para o mundo e são felizes. Ah, o engano doce da ignorância.
Como em tudo, resumir fenómenos a umas linhas boçais de preconceito é próprio de gente pequena. Matéria solta e inútil que não faz avançar nem o mundo nem as pessoas que o compõem. Seria, no entanto, menos perigoso se a generalidade deste tipo de preconceito se mantivesse apenas no lugar de uma crítica bronca e não - como tantas e tantas vezes acontece - extravasasse para outras fronteiras. Em especial, a religiosa.
Ler e ouvir alguns dos inquisidores supremos ao futebol defender, por vias - julgam eles - encapotadas, ideias tão bizarras como a de que a morte deve ser um processo natural, não forçado, sujeita à vontade do Senhor; ouvi-los ou lê-los dissertando, com ar muito sério!, sobre o egoísmo dos que preferem acabar com a vida, é um resumo claro e inequívoco da verdadeira falta de noção humanista que têm. Refugiam-se em conceitos bacocos, lançados por uma Religião que anda a fazer de fiscal da existência há milhares de anos, para no fim gloriosamente concluírem que as pessoas que querem morrer (caramba, que heresia!) nem merecem morrer nem merecem viver porque querem morrer.
Sou adepto de futebol, daqueles doentes. Doente pelo meu clube, pelo estádio, pelos amigos, pela festa, pelo desporto. Sou doente pela vida e hei-de ser, se chegar a um ponto de desgaste inultrapassável, doente pela morte. E, nessa altura, quererei junto de mim os meus amigos doentes por futebol. Porque eles sabem melhor do que os outros - os devotos à causa imaginária - que a vida e a morte se confundem todas as semanas num jogo de 90 minutos. E sabem perceber que a morte é uma escolha, não é nenhuma afronta, egoísmo ou falta de amor pela vida.
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