domingo, 2 de junho de 2013

La rumba de Benfica

Não me perguntem mais a que horas é o Benfica, em dias de Champions. Exceptuando talvez da namorada, da velhota que me vende litros de cerveja em horas de aperto e dos sportinguistas - que suporto com simpatia e até alguma compaixão -, não consigo ouvir esta pergunta de mais nenhum ser humano ou desumano, animal, vegetal ou quadrúpede. Estou até capaz de abrir um tópico no facebook - "Vamos matar os que desconhecem as 19:45" - e depois lançar apelos de grande logorreia a clamar pela participação das pessoas. É a democracia a fazer valer-se. 

 Quando eu vi pela primeira vez o Barcelona no Estádio da Luz era tão pequeno que acho que levava ainda as mangas largas de golos do Rui Águas contra o Steaua de Bucareste e a mão do Vata escondida dentro de uma pastilha Gorila. Do terceiro anel, os jogadores pareciam mosquitos - digo isto porque ainda só havia Elifoot; se tivesse sido anos mais tarde, os jogadores teriam parecido bolas do FM e uma barra em baixo, feérica, vermelha e branca, branca e vermelha, histérica com o golo. Sempre foi o problema destes jogos: não filmavam as bancadas. Era por isso que avançávamos nós, em frente ao computador, fazendo gestos de milhares de adeptos, para ver se os nossos jogadores, metodicamente escolhidos na pré-temporada, compreendiam o que era jogar no Benfica e davam mais aquele bocadinho, aquela corrida que chegasse ao golo. Nunca gostei dos cruzamentos para a área em que apareciam várias bolas que se juntavam todas numa e a bola saía a rasar a trave. 

 O Bakero tinha um problema óbvio: era de si pequeno, o que compunha uma imagem que, do Terceiro Anel, se me afigurava difícil de perceber. Seria um jogador ou uma mancha de tinta blaugrana no relvado? Só me dava conta de que aquilo se mexia quando via a bola chegar-se-lhe e sair redonda para um lado e para o outro; um ponto no meio do campo que lançava a equipa para um acordeão, às vezes tudo dançava em expansão, outras comprimiam-se num azulejo mágico. O Bakero devia ter a minha altura e eu, não sei bem porquê, sentia que se ele podia estar ali dentro eu também podia apoiar os pés no cimento coberto a cores da Shell e voar para as costas do Paneira para ver o jogo mais de perto. 

 Ao longo dos anos, enquanto crescia, fui vendo do Terceiro Anel os jogadores mais crescidos, como se tivessem feito obras no estádio sem que eu tivesse notado. Ou então cresci uma imaginação galopante que me permitia alucinar gigantes numa visão de mosquitos. Era normal: não se ficava indiferente às tardes e noites de tanto Benfica acumulado - até os bancos de suplentes, onde o Toni vociferava impropérios gloriosos, de repente, a meio do meu crescimento, já me parecia que tocavam nos holofotes. Era assim: primeiro chegávamos ao terceiro anel e ficávamos uns minutos a sentir o ar frio de estar do lado de fora da estratosfera; a meio, entre fumos, chouriças e vinhos a martelo (eu só Trina de Laranja e talvez um golito de carrascão, mas não sei prometer), sentíamos que podiamos mesmo estar em território terestre; no fim, o relvado subia-nos sangue adentro e era como se estivéssemos a ver o jogo deitados no campo, com as cotovelos encostados à grama e os ouvidos cheios de peculiares vociferações dos jogadores e o toque da bola sempre que apanhava uma chuteira no caminho. 



 O Barcelona tinha o Eusebio, que não era o nosso Eusébio e tinha, entre tantos e tão bons, o Laudrup - que esteve quase para ser o Pedro Barbosa ou então o contrário porque eles se confundiam muito naquele lugar que é o da genialidade. Nós tínhamos o Thern, que foi dos primeiros jogadores a confundir ataque com defesa, largura e profundidade e outros nomes para aquilo que afinal é simples e facilmente descodificável: o futebol. Na direita, lembro-me de ver um pequeno ponto vermelho fazer de lateral e extremo e médio criativo e segundo avançado chamado Vítor Paneira, que era aquele tipo de jogador com quem eu gostaria de casar, se eu quisesse casar com um jogador. A perninha direita estava sempre no ar, à espera de um olhar desatento do adversário, enquanto a esquerda mantinha a ligação do atleta ao relvado. A bola ficava à frente, sem lugar definido, mas sempre ao alcance de um qualquer imprevisto. Depois era ver o isco lançado sobre um lado de Paneira e a bola a sair para o meio, o trote de Paneira em crescendo e depois Isaías ou Thern ou Yuran ou Rui Costa ou algum ponto vermelho que, por algum milagre ainda não explicado, sempre surgia tocando ao de leve a bola ou rodopiando em roleta russa o relvado que ia dar ao Pacheco, que, rodando não a perna mas o bracinho direito aos círculos antes de fintar, avançava pelo campo e descobria pequenos nenúfares de onde aparecia em situação de golo. 

Chapelou Pacheco Zubizarreta mas foi um quase golo. A bola no Benfica levava mais ou menos 10 segundos a chegar do guarda-redes à baliza adversária. Eu não sei bem como eles faziam aquilo, uma vez que estava com os olhos e a boca e os braços parados lá do tecto do mundo, mas acontecia começar uma pergunta sobre os detalhes do placar electrónico ao meu Pai, enquanto o Veloso recebia a bola, e ainda estar a concluir o interrogatório fundamental e já a bola estava lançada no Yuran que falhou um golo com o guarda-redes pela frente. O Yuran ia, assim naquele jeito de tractor acolchoado, passar para o lado com o pé esquerdo mas depois passava a bola por entre as pernas do adversário e já estava em frente à baliza. Isto lá de cima parecia tudo um carrossel de certezas, ou era golo ou era quase golo, não havia terceira opção. 

 Num espaço de ano e meio, vi o Barcelona duas vezes: uma empatámos, esse de que este texto é feito, e outro em que ganhámos por 2-1, numa Pepsi Cup entre Ailton, Rui Águas e Romário e outras coisas que não vêm ao momento. Fiquei muitos anos sem ver o Barcelona na Luz e depois ocorreu Moretto e dias diferentes. Amanhã vou ver a melhor equipa do mundo de todos os tempos contra o melhor clube do mundo de todos os meus vários corações. Seja o que for, será um dia feliz.