sábado, 1 de junho de 2013

Esta noche me emborracho

A caminho de Valparaíso, pedaço de mundo em devoção ao mar e a Pablo Neruda, vindo do Peru, aterrei sem aviso nem asas numa espécie de autocarro em Antofagasta, no Chile. Primeira impressão: sem impressão. A terra igual ao Redondo em Janeiro, o mesmo sol do Alandroal, havia água e montanhas como em Sintra. Não fossem os Andes ao longe com neve aos solavancos quase caíam do céu azeitonas e poejos. 

 Mas é diferente ver o mundo por um vidro encardido de impressões digitais ou cair com os pés no chão. Encostei o meu corpo à gravidade chilena e o que até ali tinham sido árvores e roupa e gente e hortas e vida em movimento feita corrimão de existência passou a ser cheiro e som e pessoas em três dimensões. Primeira ideia na estação de Antofagasta: ir a pé com malas, sono e resquícios peruanos até à próxima cama mais barata e ali alojar os destroços, humanos e desumanos, para voltar a respirar com tempo. 

 Cem metros depois, estamos, eu e a brasileira companheira de viagem, com três chilenos no radar num surpreendente descampado andino. Não parecem guias de turismo nem voluntariosos mirins rezando ao deus Baden Powell. Os olhos não anunciam solidariedade ibero-americana e há neles uns gestos que, parece-nos, talvez queiram dizer: foge. Fugimos. Corremos. Ao som da luz. À velocidade do som. À velocidade da luz, que ali - temos de contar, de dedo salivado ao vento, com os ares húmidos e torrenciais dos Andes - foi, numa tradução científico-naturalista, um sprint colina acima até ao encontro de alguma coisa que aparecesse - carro, animal, gente até. Apareceu um táxi (que desígnios, Senhor?), onde entrámos com a vontade de sede de dois meses, a fome de sobreviventes e a dúvida de não estarmos demasiado ganzados a imaginar coisas no coração do mundo.

 Atrelámos no centro de Antofagasta. Estradas de terra, uma rua principal, carros e ruas mas gente, muita gente. Alguma gente. Entrámos na primeira espelunca razoável que servia os nossos bolsos - um prédio antigo, feito de túneis e claustros, poeira de espanhóis no Pacífico de 2007. Um quase-palácio feito casa de putas e lugarejo de turistas em quase-desespero. Perguntámos o preço, gostámos do preço e levámos, putas, as nossas malas mais altas do que nós para camas com cheiro a mofo, peixe frito, fruta e outros símbolos que não importa descodificar nesta história. Estava uma santa em cima de uma mesa, tinha uma inscrição em latim, qualquer coisa como «Eu vos absolvo» e é possível, não dou certezas, que aquilo me tenha inspirado a revolver o colchão em busca de provas, como um tesouro à espera não de putas mas de curiosos e intrincados turistas. No canto inferior esquerdo do colchão, onde o golo é mais bonito, 200 reais estatelados contra umas molas enferrujadas. «Vamos beber!», disse o vosso narrador, como se não fosse beber de qualquer forma, com ou sem miríficas descobertas. 

 Nas ruas de casas baixas, passeios que são a continuação da estrada embora tenham um pequeno declive da altura de uma moeda porque é preciso conhecer o príncipio e o fim das coisas, gente bonita e feia consoante as consoantes, entradas de casas de repasto e cartazes, em triângulo e a tinta de pintar paredes como manda a tradição (não, isto não é sítio de pub), apaixonámo-nos por uma voz que cantava Gardel em karaoke desalinhado e suspeita legendagem. Como dizer o primeiro olhar? Entra-se num lugar que cheira a batatas assadas, a carne ensopada, legumes gelatinados numa redoma de refugado com especiarias, o vinho chama-nos das mesas, há pessoas a rir e a comer, dias quotidianos cheios de horas e gente que se conhece há demasiado tempo, antes de termos chegado, antes de o mundo ter chegado. Atrás do balcão, uma mulher canta "Esta noche me emborracho", uma mulher cheia de alma canta Gardel junto às latas de Cola e aos pequenos fritos andinos que sabem a qualquer coisa que ainda não provaste. Grita? Não, canta aos volumes, enche o ar do sítio com uma voz rouca-cristalina de vinho e uísque e noites a olhar as estrelas e insónias que fizeram pontes e abriram sóis e dias e camas mal-dormidas e homens mal-feitos e cigarros demasiado cigarros. É aqui que queremos estar.

 Sentámo-nos na mesa principal, aquela que estava vaga à espera de alguém que nunca vem - na América do Sul há muitas mesas de fantasmas, aqueles que hão-de chegar. Fantasmámos e pedimos vinho (como não, no Chile ou noutro lado qualquer?). Ao nosso lado, Pai e Filho discutiam futebol. O Pai com 70, o Filho nuns parecidos 50 - somos da idade que nos dão. Eu queria queijo, pão e fritos aconchegados pelas mamas da cantora; ela queria a voz de um som junto ao balcão e legumes impronunciáveis na língua dos índios. Estávamos a meio do debate que não era debate quando alguém do outro lado da mesa lança o dardo: «Portugueses?». 

 Ela calou-se dentro de um colonialismo de fêmea e deixou-me mentir dizendo a verdade: «Portugueses». Os olhos do velho brilharam, chamou-nos para a sua mesa e esperou que nos sentássemos para contar tudo o que sabia do Benfica, do Eusébio, do Coluna e dos jogos e histórias que viu e ouviu de uma estranha equipa vestida «À Chile» que ganhou a duas equipas espanholas. Coisas que o vinho, a memória e a vontade de preservar no meu coração não permitem que conte porque demorariam o tempo das vossas vidas e da minha mais o tempo das distâncias entre um país-língua do Pacífico e uma Europa de 60. Conto os olhos a brilhar, o orgulho de Pai e Filho chilenos naquela Antofagasta com som de Gardel de uma mulher que servia vinhos e comidas e um restaurante que não era restaurante por onde passou e viveu o Benfica horas a fio até fechar. Sim, nessa noite perdemos o autocarro para Valparaíso e para o Pablo Neruda.



4 comentários:

Anónimo disse...

Eram putas ou um bar de paneleiros?

nuno disse...

claro claro... ainda ha 15 dias houve um porto benfica e tudo correu bem....

quer dizer em campo foram humilhados mais uma vez...

agora podem contar as historias que quiserem... este ano foi sempre a levar no corpo do porto em todas as modalidades...

nao aparecer sempre é menos humilhante e o resultado é o mesmo... perder como sempre..

Débora disse...

É, de fato, seu relato, a materialização mais fiel daquilo que sobra aos que se definem enquanto desumanos ao mesmo tempo em que são incapazes de ver o local onde reside a sua desumanidade. Personificam, da maneira mais límpida, aquilo que provoca os destroços, sem, contudo, dar-se conta do mal que provocam aos que estão ao lado. E é por isso, muito provavelmente por isso, que você reproduz o olhar absurdo que os viajantes europeus do século XIX teceram sobre o Brasil e seus múltiplos personagens, ao atribuir à mulher que te acompanha, o signo de fêmea colonizada. Rótulo, forma, padrão, julgamento, dominação, empáfia daqueles que se autodefinem superiores; erguem-se cegos à desastrosa essência de sua mediocridade.

Ricardo disse...

Débora, quanta falta de noção das coisas. Tanto discurso para dizer merda. Bastava perceber o tom para evitar tanta verborreia.