sexta-feira, 7 de junho de 2013

O Bosão de Aimar

Enquanto o champanhe inundava os óculos de cientistas meticulosamente geniais num lugar distante, a mãe de Pablo sorria em frente a um álbum de fotografias que abria com os olhos grandes e as mãos como pinças, não fosse sujar aquele ouro das memórias. Estava descoberto e comprovado e analisado e festejado o Bosão de Higgs - massa-matéria que vinha corroborar o que a mãe de Pablo já conhecia: o universo fazia algum sentido. 

 Pablo em cima de uma bicicleta, Pablo com perna estendida e uma bola no ar, Pablo a sorrir, o sinal de Pablo, o cabelo desgrenhado de Pablo e Pablo feliz, com amigos. A vizinha que tinha vindo aos soluços pela rua, com cuidado para não ferir mais aquela dor das costas que a lançava no desvario das noites em claro, chegando à casa da mãe de Pablo pediu pimentos e, se possível - não fosse o exagero -, algumas batatas para o almoço, cinco dedos de conversa e alhos e algum conforto - um "está bem? tenha cuidado com essa dor", algo que a apaziguasse e a enchesse de um sentimento de não andar no mundo sem explicação nem gente que se lembrasse das suas insónias. 

 A mãe de Pablo tinha uma panela fumegante ao lume, esquecida, crematória, quando abriu a porta e disse para a vizinha entrar. O álbum de Pablo aberto e virado ao contrário sobre uma mesa - os dentes de Pablo contra uma mesa de madeira, um sorriso estancado no vapor dos legumes. A mãe chamou a vizinha para um descanso, pôs-lhe a mão nos joelhos macerados e disse-lhe: "este é Pablo, há muitos anos". E mostrou-lhe Pablo com perna estendida e uma bola no ar, Pablo a sorrir, o sinal de Pablo, Pablo em cima de uma bicicleta, e sorriu e gargalhou da mesma forma com que tinha gargalhado e sorrido cinco minutos antes, na altura em que os dentes de Pablito não estavam assim, daquela forma quase violenta, contra um muro de madeira, à espera que a sopa e a vizinha se alargassem para o mundo. 

 A mãe fazia comentários sobre as fotografias do filho. Contava histórias, lembrava-se de outras que não estavam naquelas imagens paradas, punha vezes sem conta a mão nos joelhos e nas mãos da vizinha e ninguém - nem os cientistas que bebiam champanhe de óculos embaciados - podia adivinhar o aperto que lhe subia ao coração e à boca, à garganta, o orgulho misturado com sede de tempo. Comentava: "está em Portugal, tenho aqui um vídeo" e a vizinha forçada a permanecer de joelhos sem pimentos nem batatas e o marido à espera ali a três ou quatro casas destas imagens: 




 A mãe apertava as pernas da vizinha enquanto cantava "Pablo, Pablito Aimar..." e a vizinha fechava-se numa dor que estava quase a rebentar os joelhos para um respeito sem mácula, devoção, pedaços de imagens de Pablo a fazer aquilo nas ruas, em casa, na cozinha com e sem pimentos, batatas que tinham servido há muitos almoços e jantares atrás para uma sopa que esperou Pablo aos chutões tempo demasiado e arrefeceu. Que batatas e pimentos eram aqueles? O que seria feito deles, desceram pelos corpos e saíram do outro lado da horta e voltaram a crescer e a ser pimentos e batatas e sopas atrás de sopas, todos à espera de mais um golo de Pablo numas balizas de mochilas da escola? 

 A mãe de Pablo desconhece o Bosão de Higgs. Se lhe falassem disso, enrolaria os olhos, diria que trabalha desde criança e que essas coisas são feitas para os homens do mundo. A vizinha inventaria algo e até arriscaria uma muito pertinente questão: esses bosões dão para meter no tacho? e depois iria à sua vida, de joelhos cheios de dores e um saco de pimentos e batatas que a mãe de Pablo lhe oferecera enquanto via o sinal na cara do filho e pensava sobre essas coisas profundas de levarmos na cara e no corpo e no coração marcas iguais de criança a homem, de menino a estrela. Sinais de deus.

1 comentário:

Anónimo disse...

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