sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ode a Margarida Prieto

Como eu não sou religioso, tenho tempo para pensar. Se eu andasse a planear roubar a caixa de esmolas da Igreja, a inventariar a vida dos outros, a estudar exaustivamente os livros que dizem que Deus existe porque o filho dele escreveu um livro, em rezas ou idas à missa, restar-me-ia pouquíssimo tempo para o resto. E o resto é absurdamente desgastante. Cansa muito pensar, consomem-se dias nisto e não se chega a conclusão nenhuma. Se ao menos Deus existisse para desinventar os que nele não crêem. Se ao menos.

Como tudo seria mais fácil se eu acreditasse que, morrendo, viveria e não esta estúpida ideia que não me sai da cabeça de que, morrendo, morro. Uma luz que me chegasse de fininho, me iluminasse e me criasse crente. Não precisava de ser cinematográfico; um toque no ombro, um pentear de cabelos, uma mão sobre a minha, dois cubos de gelo sobre a mesa, qualquer coisa que me ensinasse o dom da fé sem questões. Mas mantenho teimosamente esta luta comigo próprio, este absurdo necessitar de provas, de coisas tangíveis e claras. Se ao menos Deus existisse e me chamasse pelo nome. Às vezes estou na cozinha a olhar o horizonte nublado, requisitando absolvições divinas e oiço uma voz. "Ricardo, Ricardo" e não sei se é do gin se do adiantado do mundo mas entra-se-me uma esperança de eterno que logo é miseravelmente destruída pela realidade: afinal não é Deus nem Nosso Senhor nem sequer a Fátima que gostava de comer azeitonas em cima de uma árvore. É a vizinha que traz o quotidiano: "podes passar-me as cuecas do meu filho que caíram no teu estendal?". Se ao menos Deus fosse uma dona de casa. Se ao menos.

No outro dia, visitaram-me. Abri a porta e uma senhora muito bem composta com o seu deficiente mental de estimação atrás dela, de óculos muito grandes, vítreos e profundos, umas mãos pequenas e uns olhos que me perscrutavam as pontas dos pés. A senhora de cabelo apanhado, casaquinho de malha, ombros caídos sob a presença do etéreo e uns livrinhos de que, tem a certeza, eu vou gostar muito de ler. Não são bem livros, antes folhetos, páginas a azul e branco com propaganda jeová. "Já leu as crónicas do Dr. Abraham Milzenovky Tratcher Viktus?", "Com imensa pena minha, não li", "Pois é, as pessoas hoje em dia dedicam-se a outras coisas", "De facto", "O que tem a dizer sobre a religião?", "Talvez caia melhor com chourição", "É crente?", "Apenas no que vejo e no Benfica", "Vê este pobre coitado aqui perto de mim?", "Se os olhos não me enganam...", "Foi salvo por Deus", "Tem provas?", "Não são necessárias", "Nem para ele próprio?", "O rapazinho não tem capacidade para isso", "Porquê?", "Tem uma deficiência mental profunda", "Compreendo", "Já leu a Bíblia?", "Aos soluços", "E o que retirou dos ensinamentos?", "Pouca coisa, quase nada, um adultério aqui, uma traição acolá, uns crimes de fraco teor artístico, pão, vinho e pouco mais", "Não se brinca com coisas sérias.", "Precisamente o que sinto", "Então sabe que Deus existe e nos ama a todos?", "Não sei, nunca o conheci barba com barba", "Tem dúvidas sobre a existência de Deus?!?!?", "Todas e mais algumas", "Mas se está escrito no livro..."

De modo que penso, a espaços. Relaciono coisas. Por exemplo: no outro dia vi uma foto do tirada na Suíça que me mostrava um jogo de xadrez gigante, com pessoas em volta. Faz todo o sentido. O que peca no jogo é precisamente a diminuta visão que podemos ter dele, quando num tabuleiro ou, pior, na internet, com as pecinhas todas espalmadas e nós a vermos-lhes os cocurutos. Para o jogo de xadrez, é necessária visão e dimensão espacial. Para imaginarmos os ângulos, o jogo de vai e volta, o futuro das peças, a morte ou sobrevivência consoante as várias escolhas do agora. Fosse o xadrez um enorme campo de ténis e o desporto teria outra popularidade entre as gentes. E, no fundo, xadrez, ténis, bilhar, futebol, o jogo da parede ainda no velhinho ZXSpectrum são de um agnosticismo desarmante. Não chega crer, há que ir crendo, aos poucos, em ângulos, devagarinho, ganhando centímetros, teimando, desistindo, escolhendo vias, pondo em causa, acertando. 

A religião é um bocadinho como aquele ser, muito de Cascais, que um dia conheci em estágios futebolísticos e que tinha como conceito de vida o limpar o rabo um número, reduzido e sempre igual, de vezes: o acaso escatológico ficava a cargo de Deus.

6 comentários:

Valco disse...

Touché!

Abraço.

All those years ago disse...

Caríssimo:

Lamento dizer-lhe, mas um ateu é um crente. Isto dito, a forma de crer em Deus, acreditandio que a Bíblia tudo resume, tudo ensina, e que é na missa que se aprende o que é Deus é terrivelmente redutora e esperaria de si outro "ataque" a quem crê em Deus. É o mesmo que acreditar que um mau livro de matemática implica que a matemática esteja errada. (Já agora pergunto-lhe: o facto de não conseguir provar a uma formiga que o Ricardo existe, prova, per si, que o Ricardo não existe?)

Saudações Benfiquistas

Alberto de Carteado Malheiro

luis disse...

Ganda "post"...mas,"o acaso escatológico ficava a cargo de Deus" ;)

Nota: era para reflectir na religião das esposas dos presidentes... De uma católica até uma jeová... as rainhas no xadrez, poderiam ser comidas por cavalos ou protegidas por peões, bispos para não comerem o rei...
Cada individuo escolhe a religião que quiser, como Benfiquista as outras são o que são...
Mas o "escatológico"...tive que analisar melhor o "escatológico" :) ...faço uma busca, e zás...
coisos, coisas que podem ferir algumas pessoas decentes e são proibidas a menores.

(Mas o mundo da net é livre;)
http://falameufio.wordpress.com/2009/06/24/uma-noite-de-sexo-escatologico/

Peço desculpas Gloriosas se ofendi alguma mentalidade mais sensível à leitura...mas que existe, existe!!

B T T

Unknown disse...

O filho de Deus não escreveu livro algum. O antigo testamento foi escrito antes dele. O Novo testamento foi escrito sobre a vida dele, mas não por ele (pelos apóstolos, acho eu).

O filho de Deus apenas andou, segundo dizem os apóstolos, a difundir a boa nova, à semelhança do que faz a senhora com o atrasado mental, só que conseguia fazer uns truques porreiros.

Aposto que, fosse a senhora a filha de Deus, ela própria, porque segundo o filho de Deus, todos somos filhos de Deus, claro que uns mais que outros pois não conseguimos fazer aqueles truques porreiros que ele fazia, a senhora seria capaz de tornar o atrasado mental num rapaz sem qualquer deficiência cognitiva.

Quanto à questão da prova à formiga, há sempre uma prova irrefutável da existência, uma valente sapatada na formiga tirar-lhe-á quaisquer dúvidas.

Ricardo disse...

Bcool, era uma linguagem mais simples, que preenchia bem o ritmo. Se escrevesse "a vida do filho sobre a qual os apóstolos escreveram..." não tinha a mesma graça.

Carteado Malheiro, deduz deste texto que sou ateu, o que é uma conclusão como outra qualquer, só não será necessariamente verdadeira. Logo à partida porque teríamos de conceber um ângulo pelo qual analisássemos «Deus». O que é Deus? O Deus religioso? O místico? Uma "coisa" divina? Algo que precisa de um nome que se aproxime do reconhecimento e conhecimento humanos mas que afinal não passe daquilo a que comummente atribuímos à Criação? Um sentimento? Eu creio em muita coisa, Carteado Malheiro. Só não nas trafulhices religiosas, que nada têm que ver com «Deus».

Sobre a sua última questão, deixar-lhe-ia, como resposta uma pergunta: se eu decidir acreditar que uma esfregona criou o mundo e que devo rezar à esfregona só porque "sinto" uma "fé" na esfregona, devo ser considerado maluco ou construímos uma religião em volta disto?

Saudações.

Ricardo disse...

luís, foste ao escatológico profundo :)