Há, em alguns textos que li sobre o assunto, especialmente do companheiro Coluna, uma ideia que, apesar de ser obviamente legítima e versar sobre um flagelo evidente no Estádio da Luz, me aflige enquanto benfiquista: a de que um jogador, sobretudo um capitão, pode reagir daquela forma perfeitamente injustificada porque terá sido alvo da boçalidade daqueles adeptos - e se eles existem em grande número! - que passam o tempo a assobiar, a vociferar por tudo e por nada, aos gritos histéricos.
Isto aflige-me não porque queira defender esse tipo de adepto - pelo contrário; mesmo no anterior post verso sobre esse tormento que é o adepto que vai para o Estádio libertar as frustrações que tem em casa -, mas porque, acima de tudo, tem de estar presente uma ideia que não me parece passível de discussão: o jogador é o protagonista de todo este filme que gostamos de seguir ao longo das nossas vidas chamado futebol. O jogador é que é o alvo de todas as atenções; é que representa o nosso clube; é que é visto nas televisões de todo o mundo, semana após semana; é que ganha fortunas (e isto não é aquele argumento "eles é que o ganham", é mesmo pedir alguma responsabilização por um estilo de vida que é especial e merece ter coligados alguns deveres); é que é apoiado (ou até apupado, em maus casos); é que está no relvado a ser escrutinado; é que leva oficialmente e em representação o símbolo do Sport Lisboa e Benfica.
Na Eurosport ou noutra qualquer televisão, não vão aparecer uns 300 adeptos que assobiaram a equipa ao longo dos 90 minutos. Mas aparecerá o Luisão a chamar "filhos da puta" para os adeptos da sua equipa. Não vão aparecer 300 adeptos a chamar nomes ao Cortez ou ao Maxi ou a quem quer que seja. Mas aparecerá o Luisão de cabeça perdida de gesto de apito na boca. Não vão aparecer 300 adeptos a fazer piretes e a dizer "isto é uma vergonha" quando deviam estar a apoiar a equipa. Mas vai aparecer o Luisão a desrespeitar o manto sagrado que tem vestido.
No Benfica, de há 17/18 anos a esta parte, temos vindo a assistir a uma mudança clara dos seus princípios básicos, dos valores que o nortearam sempre, da sua génese ideológico-moral. Os anos de Vieira acentuaram esse declive e hoje vivemos tempos em que já tudo é permitido, sempre sob o manto de uma qualquer desculpa esfarrapada e conveniente. Cardozo fez mal porque empurrou Jesus, mas Luisão não fez mal quando se encostou ao árbitro alemão. Enzo Pérez não devia ter-se chateado com Jesus em Amesterdão, mas Luisão não fez mal nenhum em, na vez de ir festejar a vitória com os colegas e os adeptos, ir insultar uns quantos parvos que ali estavam a fazer figuras de parvos.
Há qualquer coisa aqui que me entristece e acho que sei o que é: o Benfica está a deixar de ser Benfica. A generalidade das pessoas começa a defender princípios já não tendo em vista a defesa intransigente do clube, mas a defesa intransigente das pessoas que o dirigem. Se convém achar um gesto menos avisado grave, então acha-se o gesto menos avisado grave; se não convém, diz-se que é uma coisa de somenos ou até que fez todo o sentido. Repare-se nisto: há pessoas que defendem acerrimamente que faz todo o sentido um capitão - sim, capitão - do Benfica, após uma reviravolta maravilhosa, ir chamar filhos da puta a uns adeptos do clube. Interessa zero se eles são broncos, parvos, patéticos, ignorantes - se calhar são tudo, se calhar são só parte disso; interessa que são adeptos do Benfica, que estavam no Estádio do Benfica, a ver e a apoiar (ou a desapoiar, mas ainda assim presentes) o Benfica. Ora, um capitão do clube não pode - poder, pode; não deve - cometer um acto grotesco desta natureza. Não sentir isto - como, pelos vistos, muitos já não sentem - é um de tantos sinais que demonstra que o Benfica está a deixar de ser Benfica.
E isto é fundamental, é crucial, extraordinariamente importante para o resto da época? É lógico que não. Isto é crucial, importante e fundamental porque é um episódio entre vários que vão provando a curva descendente pela qual a mística benfiquista está a passar. Já nada interessa. Já nada importa. Tudo se aceita, tudo é desculpável, tudo pode acontecer, afinal vivemos "tempos de profissionalização", embora seja o profissional a cometer uma heresia sobre o que é o clube ou o que ele sempre foi.
Não, não está certo que um capitão do Benfica chame nomes aos adeptos do clube. Vamos ler outra vez a frase: não, não está certo que um capitão do Benfica chame nomes aos adeptos do clube. Parece ridícula de tão óbvia. E no entanto...
Adenda (00:42): Depois de ter colocado o post, a Marta - ex-membro do blogue - lembrou-me esse tratado de Lobo Antunes sobre o futebol e, em especial, sobre o capitão José Águas. Numa altura em que falta memória ao Benfica, acho que faz sentido colocar aqui este lindo texto:
"Há mais de trinta anos que não assisto a um jogo de futebol.
Não conheço os estádios novos, vejo, às vezes, um bocadinho na televisão. Mas entre os dez e os vinte anos não falhava um jogo do Benfica. E não falhei enquanto Águas jogou.
Claro que não era apenas Águas: era Costa Pereira, Germano, Ângelo, Simões, Eusébio, Cavém, o grande Mário Esteves Coluna que Otto Glória considerava o melhor jogador português, outros mais artistas que jogadores, como José Augusto, por exemplo, a todos estou grato pela beleza e a alegria que me deram, porém nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas.
Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio?
Era a elegância, a inteligência, a integridade, o talento, e ao pensar em escrever o meu desejo era ser o Águas da literatura.
Vi Pelé, Didi, Nilton Santos, Puskas, Di Stefano, Santamaria, tantos outros génios, no tempo em que o futebol não era ainda uma indústria nem os jogadores funcionários competentes, comandados por esse horror a que chamam técnicos: era pura criação, uma actividade eufórica, uma magia cinzelada, uma nascente de prazer, uma inspiração, um entusiasmo.
Águas foi tudo isso e, muito novo, ganhou o respeito dos colegas, dos adversários, dos jornalistas da época, que os havia de grande qualidade, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, tantos outros.
Não jogava futebol: criava futebol, respirava futebol, inventava futebol, e teria sido um privilégio para mim conhecê-lo.
Não para falar com ele, para o ouvir. A sua beleza física invulgar distinguia-o de todos os outros, a forma de se mover em campo era única, a autoridade sobre os companheiros natural e humilde.
Os miúdos que iam comigo à bola chamavam-lhe senhor Águas, sem sonharem que era desse modo que Simões e Eusébio o tratavam, como tratavam Coluna.
Senhor Águas, senhor Coluna. Reconhecíamo-lo, do alto do terceiro anel, no estádio de então, onde, de tão longe, os jogadores minúsculos, pelo modo de correr, se deslocar no campo, passar, rematar, reconhecíamo-lo pelos seus golpes de cabeça, inimitáveis, pelo sentido da ocupação do espaço, pela simplificada geometria do seu futebol.
Não tinha a garra de Ângelo ou Cavém, a força de Coluna, o gigantesco talento de Eusébio, o poder do drible de Simões, a velocidade de José Augusto: era uma espécie de rei sereno e eficaz, um aristocrata perfeito.
Até a andar os olhos ficavam presos nele, na harmonia dos gestos, no modo de ajeitar bola, e eu, criança de dez anos ou adolescente de quinze, pensava tenho de trabalhar mais esta página, ainda não chego aos calcanhares de José Águas.
Escrever como ele jogava, com a mesma subtileza e a mesma eficácia.
Escrever como a equipa do Benfica, umas vezes à Ângelo, outras à Germano, outras à Coluna, e finalizar à Águas. Nunca deve ter ouvido falar em mim nem podia adivinhar que um garoto qualquer o tomava não apenas como mestre de futebol mas como mestre de escrita.
Só, mais tarde, certos saxofonistas de jazz, Bird, Coltrane, Webster, Coleman, Hodges, alguns mais, tiveram, sobre o meu trabalho, influência semelhante.
Mas Águas foi o meu primeiro e indisputado professor: escreve como ele joga, meu estúpido, aprende a escrever como ele jogava.
Como morava em Benfica via-o, às vezes, no autocarro do clube e ficava, pasmado de admiração, a fitá-lo.
Isto lembra-me o meu irmão Nuno chegando a casa de dedo no ar
- Toquei no Eusébio, toquei no Eusébio
como provavelmente, eu o faria, porque na infância e na adolescência o futebol era, para além de uma aprendizagem do mundo, um prazer infinito.
A cor dos equipamentos
(o meu amigo Artur Semedo:
- Não sou um homem às riscas, sou homem de uma cor só)
a entrada em campo, o hino, tudo isto me exaltava e fazia feliz.
E as vitórias, comemoradas em Benfica com bebedeiras eufóricas.
Uma das minhas glórias secretas, confesso-o agora, consiste em ter visto a fotografia do meu pai no balneário do hóquei em patins do Benfica, de ele ter estado no Campeonato da Europa de 1936, em Estugarda, com vinte ou vinte e um anos, e de brincarmos com uma caixa de lata cheia de medalhas, a que o meu pai não dava importância alguma e eu considerava inestimáveis.
Há pouco, a minha mãe
- O que faço eu a isto?
exibindo-me uma espécie de troféu ou de placas num estojo, que alguns anos antes de morrer a Federação de Patinagem lhe entregou, juntamente com outras antigas glórias, e que me recordo de o meu pai, que não saía, ir receber com satisfação secreta.
Mas, claro, eu era só filho do Lobo Antunes, não era filho do Águas, e ainda sei medir as distâncias.
Portanto, o que vou eu fazer a um campo de futebol se ele já não joga?
Seguir os funcionários competentes de um negócio?
Assistir ao bailado dos técnicos?
Ver a fantasia substituída pela sofreguidão, a ambição pela avidez, o amor ao clube pela violência idiota?
Claro que continuo a querer que o Benfica ganhe. Claro que sou, como em tudo o resto, parcial, sectário, por vezes sem bom senso algum.
Mas há séculos que não sofro com as derrotas e, sobretudo, não choro lágrimas sinceras com elas: estou-me nas tintas.
Contudo voltaria a trotar, radiante, para assistir à entrada em campo de Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz, José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna e Simões, a agradecer-lhes o facto de me terem, durante anos e anos, colorido a existência.
E talvez no fim do jogo, postado junto ao autocarro, quando os jogadores saíssem do balneário, o senhor Águas me apertasse a mão."