A campa estava
aberta, a terra remexida e as pegadas, de pé descalço, bem marcadas no solo.
Havia sinais de luta, como se o corpo se quisesse libertar do fundo da terra.
Chovia em Lisboa. O caminho que ligava o cemitério dos Prazeres, por estes dias de verão deserto, até nossa casa era longo e tortuoso, mas o caminho faz-se caminhando. O defunto não reconhecia coisa nenhuma. A paisagem que muitos
anos antes era campo, hoje estava rasgada por edifícios altos de onde os homens
podiam tocar o céu. Os automóveis eram diferentes e mesmo as pessoas não
pareciam as mesmas, falando para estranhos objectos pequenos que levavam à
orelha. No meio de toda esta selva, um único pensamento atravessava a mente
deste homem que vagabundeava pela rua: chegar ao Campo Grande. Mas a idade era avançada e a paisagem estava tão diferente que, ou isso ou o instinto, o destino, ou o que queiramos chamar, acabou por guiá-lo ao bairro de Benfica. Mal chegou, aqueles gigantes arcos triunfais, onde corria o
sangue da raça e da glória, tal como Fialho Gouveia os imortalizara
aquando da inauguração, prenderam-lhe a atenção. Qual Campo Grande, ele sentiu
que pertencia ali. Era vermelho, era em Benfica e sentia-se em casa. Seria o
trajecto natural, depois das Amoreiras e do Campo Grande, regressar ao bairro
que lhe dera o nome.
Andou, caminhou,
percorreu quilómetros e ali estava, na Luz. Entrou e contemplou o estádio:
enorme, gigante de betão com arcos vermelhos triunfais, mas escondido por trás
de pavilhões e de lojas de electrodomésticos. Tudo era estranho à sua volta.
Passou a ponte do Alto dos Moinhos, olhou para a direita e viu um pequeno campo
onde umas crianças jogavam à bola. Sentou-se perto de um jovem. O contraste
entre ambos era por demais evidente. O respeitoso bigode na face pálida do
senhor com o pijama às riscas contrapunha-se à face rosada, ainda com algumas borbulhas,
do jovem de t-shirt encarnada. A medo, o sexagenário iniciou a conversa:
- Então... o Benfica
de hoje é isto.
- Isto? Como assim?
- retorquiu o jovem.
- Isto...
- [silêncio]
- O que se passou
nos últimos anos com o nosso Benfica?
- Quantos anos?
- Pois, não sei...
em que ano estamos?
- 2013 - respondeu o
rapaz a medo. - Não sabe em que ano estamos?
- Não me lembrava,
digamos que a memória nunca foi o meu forte. Mas então, o que se passou nos
últimos 65 anos?
- 65? Bom... muita
coisa - começou por responder o rapaz, atrapalhado. - Eu só tenho 19 anos, só me
lembro de ver o Benfica nos últimos 11 anos, mas sei a História do clube de trás
para a frente.
- Óptimo.
- Nos anos 50
começámos por destronar o domínio do Sporting, vencemos a Taça Latina e
inaugurámos o velhinho Estádio da Luz, que foi a nossa casa até 2003...
- O que eu perdi -
suspirou.
- Mas ainda há mais
e melhor. Nos anos 60 foi o domínio completo: com a chegada do
profissionalismo, o Benfica ganhou duas Taças dos Campeões Europeus, foi à
final de mais três, conquistou sete campeonatos e quatro Taças de Portugal.
- Taça dos Campeões
Europeus? Uma prova que reúne os vencedores dos campeonatos dos diferentes
países europeus? - questionou.
- Sim... - respondeu
o jovem, com a voz ainda trémula. - Mas o sucesso continuou. Nos anos 70 foram
mais seis campeonatos e na década de 80 mais cinco, com duas presenças em
finais da Taça dos Campeões Europeus.
O idoso parecia
atordoado. Não esperava que o clube tivesse atingido tamanhos êxitos. O
profissionalismo, contra o qual ele batalhara, acabara por dar frutos. O
Benfica já era o maior clube nacional aquando da sua morte, mas nunca esperou
que atingisse tanto sucesso fora de portas.
- João, já tenho as
bifanas! – gritou alguém, de longe.
- É o meu pai -
atalhou o rapaz – viemos hoje ver o meu irmão mais novo a jogar. Tem 10 anitos.
Está ali, com a camisola 10. Chama-se Pedro.
- Cá está a tua
bifana, campeão!
- Obrigado, pai.
- Ah... bifana à
Benfica – regozijou o pai – era mesmo disto que eu estava a precisar. O senhor
sabe, este jovem aqui, o João, tem tudo para ser um futuro craque do Benfica!
- Ai sim? – inquiriu
o homem de bigode respeitável.
- É... mas o Benfica
dispensou-o no final da época passada. Disseram que nunca iria chegar longe.
Veja lá, ele até era capitão dos juniores, marcou alguns golos e chegou a falar
com o Rui Costa. Mas não, em vez de lhe darem uma oportunidade, preferiram
dispensá-lo para contratar uns sérvios. Mas pronto, é a vida, agora há que ter
fé no Pedrito!
João estava de
cabeça baixa, meio triste pela dispensa do clube que amava desde que se
lembrava ser gente, meio acabrunhado pela forma como o pai falava das suas
esperanças no irmão mais novo. Não que o talento faltasse nos pés daqueles
miúdos, mas sabiam que não chegariam longe no clube do coração.
- A propósito –
lembrou o pai – ainda não fomos ver o novo Museu Cosme Damião!
- Museu Cosme Damião?!
– exclamou em sobressalto o defunto.
- Sim, é verdade.
Temos um museu novo, homem! Por onde tem andado? Museu novo e canal do clube,
Benfica TV, um sucesso por estes dias. E a renovação das
casas do Benfica, a Fundação, as modalidades, a piscina, os pavilhões, o centro
de estágios, o estádio. O Benfica está moderno, está virado para o século XXI,
o Benfica está forte, o Benfica...
- O Benfica não
ganha porra nenhuma, pai! – exclamou o miúdo, visivelmente agastado pelo
discurso do progenitor. – O Benfica está há 20 anos nesta desgraça, o Benfica
vai para 20 anos dirigido por vaidosos, aldrabões, enganadores e charlatães –
prosseguiu. – O Benfica ganhou tantos campeonatos desde que eu nasci como o
Porto ganhou nos últimos três anos, ou seja, três!
- Mas então o que se
passou? – perguntou o defunto, num misto de preocupação com o estado do clube e
com o avolumar da discussão entre pai e filho.
- Sabe... – começou
por responder o rapaz – nasci a 14 de Maio de 1994, no dia de uma das mais
retumbantes vitórias sobre o Sporting, o famoso 3-6 em Alvalade. O Benfica foi
campeão nesse ano pela última vez num longo período de tempo. Cresci no meio da
festa de sportinguistas e, sobretudo, portistas, pelos campeonatos ganhos e
pelas idas a finais europeias. O Benfica, depois de senhores como Borges
Coutinho, Ferreira Queimado, Fernando Martins, João Santos e Jorge de Brito,
passou a ser dirigido por um bando de vaidosos, oportunistas, aldrabões e
charlatães como Damásio, Vale, Vilarinho e Vieira. Perdemos troféus, perdemos
credibilidade, fizemos e fazemos negociatas obscuras, e, pior que tudo,
roubaram-nas a militância.
O pai do João saíra.
Não gostava deste espírito revolucionário do seu “mais velho”. Não gostava que falassem mal de Vieira, homem
pelo qual nutria uma profunda admiração que o tinha levado, inclusivamente, a
mandar fazer um retrato do querido líder para colocar numa das paredes da sala,
ideia prontamente vetada pela sua esposa, que ainda não tinha perdido o juízo e
a sensatez. Esta era, aliás, uma forma comum de terminar as discussões sobre o
actual presidente: quando os argumentos se esgotavam, batia em retirada. Os
árbitros e a construção do novo Estádio da Luz, para o qual, diga-se, o papel
de Vieira foi praticamente nulo, eram os seus argumentos favoritos, mas ele
próprio já os sentia gastos de tanta utilização. Afinal de contas, dez anos de
desculpas esfarrapadas fazem-se notar até mesmo no mais ceguinho dos
seguidores.
- Mas então, o que
ganhou o Benfica desde 1994?
- Três campeonatos,
duas Taças de Portugal e uma Supertaça. Ah, e quatro Taças da Liga, uma
competição nova que se criou entretanto.
- É manifestamente
pouco – afirmou o defunto, baixando a cabeça em sinal de desilusão.
- Mas há mais. Mais
e pior. O que me faz confusão não são as derrotas. Ou por outra, também fazem,
mas há pior. O Benfica perdeu o associativismo. Ganhou um exponencial número de
sócios mas perdeu militância. Perdeu massa crítica e perdeu o espírito que o
caracterizava, espírito esse que infelizmente não cheguei a viver. Passámos de
assembleias-gerais cheias, com mais de 4000 sócios, para meia-dúzia de gatos
pingados que abanam a cabeça positivamente a tudo o que a Direcção lhes propõe.
A grande verdade é que passámos de um clube de vencedores a um clube de
perdedores inconformados, depois perdedores conformados e agora perdedores
orgulhosos. E quem não concorda com o actual estado de coisas é apelidado de
papagaio, abutre ou garotão.
- Garotão? Garotão
era eu quando aos 18 anos tive aquela ideia em Belém. Nem eu próprio fui
unânime entre os benfiquistas. Até eu fui derrotado em eleições. Até eu tive
propostas minhas rejeitadas e votadas contra. Ninguém deveria estar acima do
Benfica. Nem mesmo o seu presidente.
O rapaz empalideceu.
Um arrepio atravessou-lhe a espinha, sentia as mãos a tremer. Ganhou coragem e
tentou preparar a voz, mas esta saiu-lhe trémula:
- O senhor é Cosme
Damião?
- Cosme Damião está
morto – disse o defunto.
18 comentários:
Bem, grande estreia aqui no Ontem... Muitos parabéns e continua!
Está aqui tudo.
Saudações
Gonçalo
Parabéns JNF pelo excelente post...
, e a mão dela vagueando nas pernas dele subindo e descendo, joelho coxas, coxas joelho, e o desejo aumentando e ele dizendo tens uns olhos tão profundos parecem janelas e ela de olhos semicerrados dispensando palavras e conversa e outras paisagens que não a da mão subindo e descendo e ele com o rosto enterrado no cabelo dela dizendo qualquer coisa sobre naufragar e ondas de mar e oiro nos cabelos e eteceteras e a vontade dela diminuindo e pensando onde é que já ouvi isto, este gajo só diz frases feitas e lugares comuns, e ele a tua pele parece seda cheiras a mel e ela parando mão e arrepiando caminho e pensando mel? cheiro a mel? e ele insistindo na conversa, mel na voz, o teu pescoço é uma coluna de alabastro... Ah essa não, alabastro não! disse ela endireitando janelas e olhar, sacudindo ondas cabelo e frases feitas, endireitando pescoço e alabastro e saindo do carro lugar comum, deixando a falar sozinho o candidato a Camões campeão de frases feitas.
Oh meu, cantas bem mas não me alegras...
Em 1ºlugar, parabéns pela sua entrada JNF, ao enriquecer um dos melhores (senão mesmo o melhor), sítios da Gloriosasfera.
Um retrato magnífico e lapidar de um jovem inconformado com a merda de rumo a que o SLB assiste, e um defunto que viu a essência dos primórdios do Benfica; a tristeza de o defunto assistir a uma nova instituição patética e usurpadora dos verdadeiros valores do SLB, cujas fundações começaram a ser construídas em 94 e oficialmente inaugurada em 2003. Dá pelo nome de Construção Entreposto e Vieira Lda. , ou de uma forma mais sucinta, O Benfiquinha.
Insitituição esta um verdadeiro orgulho dos adeptos de cinema (estádio leia-se), ou se preferirem, Vieiristas, uma variante portuguesa dos venzuelanos, cubanos, soviéticos e norte- coreanos.
E orgulho por obras tão retumbantes como instauração da ditadura vieirista, construção civil, amizades com tripeiros, comissões, negociatas, mentiras, pontapés e escarradas nos valores, etc etc. Tudo obras que orgulham o Vieirista, e com a coroação máxima do seu orgulho, 2ºs lugares em catdupa, o prazer de se ser a puta do porto, e cuja homenagem, uma mega estátua de Nosso Querido Líder, para homenagear o conformismo desses adeptos de pacotilha e vitórias, mas acima de tudo a hegemonia (essa sim, a verdadeira), do fcp...
Excelente alegoria
QUAL FOI MESMO O ÚLTIMO LIVRO QUE LESTE???
Sê bem-vindo JNF! a excelencia do 1º post atesta bem o acerto da tua chegada. parabéns. forte abraço
Brilhante. Parabéns!
Grande regresso à blogosfera JNF, sejas bem-vindo de volta...
Eu que tenho 19 anos também, revejo-me um pouco no jovem do texto, quando tento explicar aos mais velhos que defendem LFV no que este tornou o nosso Benfica, que no fundo, eu nunca vi.
E eles até se babam uns para os outros!!!!
Excelente.
Primo do Holmes,
espero que a tua equipa, o teu treinador e o teu presidente te estejam a dar as alegrias que eu, pelos vistos, não te posso dar. Ninguém merece ser infeliz.
Anónimo,
O Delfim, de José Cardoso Pires.
Texto com goleada à Tacuara. Siga.
A par do Novo Geração, o Ontem soma e segue.
Força, companheiros, vençam e cada vez seremos mais.
JNF
Gosto muito de música, mas é com qualidade...
http://www.youtube.com/embed/XlyCLbt3Thk?rel=0
Uhuh... adoro stalkers.
Mas Holmes, deixa-me que te diga, e agora fora de brincadeiras... sim senhor, bom gosto.
Muitos parabéns pelo texto. Perfeito
Simplesmente maravilhoso.
Bem vindo.
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