quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O caminho faz-se caminhando

A campa estava aberta, a terra remexida e as pegadas, de pé descalço, bem marcadas no solo. Havia sinais de luta, como se o corpo se quisesse libertar do fundo da terra. Chovia em Lisboa. O caminho que ligava o cemitério dos Prazeres, por estes dias de verão deserto, até nossa casa era longo e tortuoso, mas o caminho faz-se caminhando. O defunto não reconhecia coisa nenhuma. A paisagem que muitos anos antes era campo, hoje estava rasgada por edifícios altos de onde os homens podiam tocar o céu. Os automóveis eram diferentes e mesmo as pessoas não pareciam as mesmas, falando para estranhos objectos pequenos que levavam à orelha. No meio de toda esta selva, um único pensamento atravessava a mente deste homem que vagabundeava pela rua: chegar ao Campo Grande. Mas a idade era avançada e a paisagem estava tão diferente que, ou isso ou o instinto, o destino, ou o que queiramos chamar, acabou por guiá-lo ao bairro de Benfica. Mal chegou, aqueles gigantes arcos triunfais, onde corria o sangue da raça e da glória, tal como Fialho Gouveia os imortalizara aquando da inauguração, prenderam-lhe a atenção. Qual Campo Grande, ele sentiu que pertencia ali. Era vermelho, era em Benfica e sentia-se em casa. Seria o trajecto natural, depois das Amoreiras e do Campo Grande, regressar ao bairro que lhe dera o nome.

Andou, caminhou, percorreu quilómetros e ali estava, na Luz. Entrou e contemplou o estádio: enorme, gigante de betão com arcos vermelhos triunfais, mas escondido por trás de pavilhões e de lojas de electrodomésticos. Tudo era estranho à sua volta. Passou a ponte do Alto dos Moinhos, olhou para a direita e viu um pequeno campo onde umas crianças jogavam à bola. Sentou-se perto de um jovem. O contraste entre ambos era por demais evidente. O respeitoso bigode na face pálida do senhor com o pijama às riscas contrapunha-se à face rosada, ainda com algumas borbulhas, do jovem de t-shirt encarnada. A medo, o sexagenário iniciou a conversa:

- Então... o Benfica de hoje é isto.
- Isto? Como assim? - retorquiu o jovem.
- Isto...
- [silêncio]
- O que se passou nos últimos anos com o nosso Benfica?
- Quantos anos?
- Pois, não sei... em que ano estamos?
- 2013 - respondeu o rapaz a medo. - Não sabe em que ano estamos?
- Não me lembrava, digamos que a memória nunca foi o meu forte. Mas então, o que se passou nos últimos 65 anos?
- 65? Bom... muita coisa - começou por responder o rapaz, atrapalhado. - Eu só tenho 19 anos, só me lembro de ver o Benfica nos últimos 11 anos, mas sei a História do clube de trás para a frente.
- Óptimo.
- Nos anos 50 começámos por destronar o domínio do Sporting, vencemos a Taça Latina e inaugurámos o velhinho Estádio da Luz, que foi a nossa casa até 2003...
- O que eu perdi - suspirou.
- Mas ainda há mais e melhor. Nos anos 60 foi o domínio completo: com a chegada do profissionalismo, o Benfica ganhou duas Taças dos Campeões Europeus, foi à final de mais três, conquistou sete campeonatos e quatro Taças de Portugal.
- Taça dos Campeões Europeus? Uma prova que reúne os vencedores dos campeonatos dos diferentes países europeus? - questionou.
- Sim... - respondeu o jovem, com a voz ainda trémula. - Mas o sucesso continuou. Nos anos 70 foram mais seis campeonatos e na década de 80 mais cinco, com duas presenças em finais da Taça dos Campeões Europeus.

O idoso parecia atordoado. Não esperava que o clube tivesse atingido tamanhos êxitos. O profissionalismo, contra o qual ele batalhara, acabara por dar frutos. O Benfica já era o maior clube nacional aquando da sua morte, mas nunca esperou que atingisse tanto sucesso fora de portas.

- João, já tenho as bifanas! – gritou alguém, de longe.
- É o meu pai - atalhou o rapaz – viemos hoje ver o meu irmão mais novo a jogar. Tem 10 anitos. Está ali, com a camisola 10. Chama-se Pedro.
- Cá está a tua bifana, campeão!
- Obrigado, pai.
- Ah... bifana à Benfica – regozijou o pai – era mesmo disto que eu estava a precisar. O senhor sabe, este jovem aqui, o João, tem tudo para ser um futuro craque do Benfica!
- Ai sim? – inquiriu o homem de bigode respeitável.
- É... mas o Benfica dispensou-o no final da época passada. Disseram que nunca iria chegar longe. Veja lá, ele até era capitão dos juniores, marcou alguns golos e chegou a falar com o Rui Costa. Mas não, em vez de lhe darem uma oportunidade, preferiram dispensá-lo para contratar uns sérvios. Mas pronto, é a vida, agora há que ter fé no Pedrito!

João estava de cabeça baixa, meio triste pela dispensa do clube que amava desde que se lembrava ser gente, meio acabrunhado pela forma como o pai falava das suas esperanças no irmão mais novo. Não que o talento faltasse nos pés daqueles miúdos, mas sabiam que não chegariam longe no clube do coração.

- A propósito – lembrou o pai – ainda não fomos ver o novo Museu Cosme Damião!
- Museu Cosme Damião?! – exclamou em sobressalto o defunto.
- Sim, é verdade. Temos um museu novo, homem! Por onde tem andado? Museu novo e canal do clube, Benfica TV, um sucesso por estes dias. E a renovação das casas do Benfica, a Fundação, as modalidades, a piscina, os pavilhões, o centro de estágios, o estádio. O Benfica está moderno, está virado para o século XXI, o Benfica está forte, o Benfica...
- O Benfica não ganha porra nenhuma, pai! – exclamou o miúdo, visivelmente agastado pelo discurso do progenitor. – O Benfica está há 20 anos nesta desgraça, o Benfica vai para 20 anos dirigido por vaidosos, aldrabões, enganadores e charlatães – prosseguiu. – O Benfica ganhou tantos campeonatos desde que eu nasci como o Porto ganhou nos últimos três anos, ou seja, três!
- Mas então o que se passou? – perguntou o defunto, num misto de preocupação com o estado do clube e com o avolumar da discussão entre pai e filho.
- Sabe... – começou por responder o rapaz – nasci a 14 de Maio de 1994, no dia de uma das mais retumbantes vitórias sobre o Sporting, o famoso 3-6 em Alvalade. O Benfica foi campeão nesse ano pela última vez num longo período de tempo. Cresci no meio da festa de sportinguistas e, sobretudo, portistas, pelos campeonatos ganhos e pelas idas a finais europeias. O Benfica, depois de senhores como Borges Coutinho, Ferreira Queimado, Fernando Martins, João Santos e Jorge de Brito, passou a ser dirigido por um bando de vaidosos, oportunistas, aldrabões e charlatães como Damásio, Vale, Vilarinho e Vieira. Perdemos troféus, perdemos credibilidade, fizemos e fazemos negociatas obscuras, e, pior que tudo, roubaram-nas a militância.

O pai do João saíra. Não gostava deste espírito revolucionário do seu “mais velho”.  Não gostava que falassem mal de Vieira, homem pelo qual nutria uma profunda admiração que o tinha levado, inclusivamente, a mandar fazer um retrato do querido líder para colocar numa das paredes da sala, ideia prontamente vetada pela sua esposa, que ainda não tinha perdido o juízo e a sensatez. Esta era, aliás, uma forma comum de terminar as discussões sobre o actual presidente: quando os argumentos se esgotavam, batia em retirada. Os árbitros e a construção do novo Estádio da Luz, para o qual, diga-se, o papel de Vieira foi praticamente nulo, eram os seus argumentos favoritos, mas ele próprio já os sentia gastos de tanta utilização. Afinal de contas, dez anos de desculpas esfarrapadas fazem-se notar até mesmo no mais ceguinho dos seguidores.

- Mas então, o que ganhou o Benfica desde 1994?
- Três campeonatos, duas Taças de Portugal e uma Supertaça. Ah, e quatro Taças da Liga, uma competição nova que se criou entretanto.
- É manifestamente pouco – afirmou o defunto, baixando a cabeça em sinal de desilusão.
- Mas há mais. Mais e pior. O que me faz confusão não são as derrotas. Ou por outra, também fazem, mas há pior. O Benfica perdeu o associativismo. Ganhou um exponencial número de sócios mas perdeu militância. Perdeu massa crítica e perdeu o espírito que o caracterizava, espírito esse que infelizmente não cheguei a viver. Passámos de assembleias-gerais cheias, com mais de 4000 sócios, para meia-dúzia de gatos pingados que abanam a cabeça positivamente a tudo o que a Direcção lhes propõe. A grande verdade é que passámos de um clube de vencedores a um clube de perdedores inconformados, depois perdedores conformados e agora perdedores orgulhosos. E quem não concorda com o actual estado de coisas é apelidado de papagaio, abutre ou garotão.
- Garotão? Garotão era eu quando aos 18 anos tive aquela ideia em Belém. Nem eu próprio fui unânime entre os benfiquistas. Até eu fui derrotado em eleições. Até eu tive propostas minhas rejeitadas e votadas contra. Ninguém deveria estar acima do Benfica. Nem mesmo o seu presidente.

O rapaz empalideceu. Um arrepio atravessou-lhe a espinha, sentia as mãos a tremer. Ganhou coragem e tentou preparar a voz, mas esta saiu-lhe trémula:

- O senhor é Cosme Damião?
- Cosme Damião está morto – disse o defunto.

Não era bem isto que ele estava à espera de ver, sessenta e seis anos depois de ter partido. Desiludido, voltou costas e seguiu viagem novamente até ao cemitério dos Prazeres, onde se deitou no leito que deixara horas antes.

18 comentários:

Anónimo disse...

Bem, grande estreia aqui no Ontem... Muitos parabéns e continua!

Está aqui tudo.

Saudações

Gonçalo

Rafa disse...

Parabéns JNF pelo excelente post...

Primo do John Holmes disse...

, e a mão dela vagueando nas pernas dele subindo e descendo, joelho coxas, coxas joelho, e o desejo aumentando e ele dizendo tens uns olhos tão profundos parecem janelas e ela de olhos semicerrados dispensando palavras e conversa e outras paisagens que não a da mão subindo e descendo e ele com o rosto enterrado no cabelo dela dizendo qualquer coisa sobre naufragar e ondas de mar e oiro nos cabelos e eteceteras e a vontade dela diminuindo e pensando onde é que já ouvi isto, este gajo só diz frases feitas e lugares comuns, e ele a tua pele parece seda cheiras a mel e ela parando mão e arrepiando caminho e pensando mel? cheiro a mel? e ele insistindo na conversa, mel na voz, o teu pescoço é uma coluna de alabastro... Ah essa não, alabastro não! disse ela endireitando janelas e olhar, sacudindo ondas cabelo e frases feitas, endireitando pescoço e alabastro e saindo do carro lugar comum, deixando a falar sozinho o candidato a Camões campeão de frases feitas.

Oh meu, cantas bem mas não me alegras...

Anónimo disse...

Em 1ºlugar, parabéns pela sua entrada JNF, ao enriquecer um dos melhores (senão mesmo o melhor), sítios da Gloriosasfera.

Um retrato magnífico e lapidar de um jovem inconformado com a merda de rumo a que o SLB assiste, e um defunto que viu a essência dos primórdios do Benfica; a tristeza de o defunto assistir a uma nova instituição patética e usurpadora dos verdadeiros valores do SLB, cujas fundações começaram a ser construídas em 94 e oficialmente inaugurada em 2003. Dá pelo nome de Construção Entreposto e Vieira Lda. , ou de uma forma mais sucinta, O Benfiquinha.

Insitituição esta um verdadeiro orgulho dos adeptos de cinema (estádio leia-se), ou se preferirem, Vieiristas, uma variante portuguesa dos venzuelanos, cubanos, soviéticos e norte- coreanos.
E orgulho por obras tão retumbantes como instauração da ditadura vieirista, construção civil, amizades com tripeiros, comissões, negociatas, mentiras, pontapés e escarradas nos valores, etc etc. Tudo obras que orgulham o Vieirista, e com a coroação máxima do seu orgulho, 2ºs lugares em catdupa, o prazer de se ser a puta do porto, e cuja homenagem, uma mega estátua de Nosso Querido Líder, para homenagear o conformismo desses adeptos de pacotilha e vitórias, mas acima de tudo a hegemonia (essa sim, a verdadeira), do fcp...

Minha Chama disse...

Excelente alegoria

Anónimo disse...

QUAL FOI MESMO O ÚLTIMO LIVRO QUE LESTE???

José Moreira disse...

Sê bem-vindo JNF! a excelencia do 1º post atesta bem o acerto da tua chegada. parabéns. forte abraço

paulo alexandre disse...

Brilhante. Parabéns!

Laranja disse...

Grande regresso à blogosfera JNF, sejas bem-vindo de volta...
Eu que tenho 19 anos também, revejo-me um pouco no jovem do texto, quando tento explicar aos mais velhos que defendem LFV no que este tornou o nosso Benfica, que no fundo, eu nunca vi.

Anónimo disse...

E eles até se babam uns para os outros!!!!

Fehér 29 disse...

Excelente.

JNF disse...

Primo do Holmes,

espero que a tua equipa, o teu treinador e o teu presidente te estejam a dar as alegrias que eu, pelos vistos, não te posso dar. Ninguém merece ser infeliz.

Anónimo,

O Delfim, de José Cardoso Pires.

Zé de Fónes disse...

Texto com goleada à Tacuara. Siga.
A par do Novo Geração, o Ontem soma e segue.
Força, companheiros, vençam e cada vez seremos mais.

Primo do John Holmes disse...

JNF

Gosto muito de música, mas é com qualidade...

http://www.youtube.com/embed/XlyCLbt3Thk?rel=0

JNF disse...

Uhuh... adoro stalkers.

JNF disse...

Mas Holmes, deixa-me que te diga, e agora fora de brincadeiras... sim senhor, bom gosto.

Anónimo disse...

Muitos parabéns pelo texto. Perfeito

Marta disse...

Simplesmente maravilhoso.
Bem vindo.