Camisola vermelha comprada numa feira, um "1" e um "0" feitos à mão e cosidos pelo meu Pai nas costas, uns calções brancos, curtos, e umas chuteiras simples. Faltou-me a Afro para ser o Valdo. De resto, estava tudo lá: a indumentária e eu, em imaginação. Quando corria, fazia aquele compasso de espera, fintava uma pinha, deixava-a cair, voltava a rodopiar, levantava a cabeça. Um pinheiro pedia-me a bola, isolado. Fingia que passava, metia para dentro, corria, olhos no chão, olhos na bola, olhos em frente. Peito feito sobre o ar vespertino, a bola chegando-me aos joelhos. Pai, posso ser o Valdo?
O carro estava estacionado numa clareira, entre o pinhal. Portas abertas, todas, bagageira para cima, com bolos, pão, vinho, rissóis e panos feitos numa máquina Singer que a minha avó rodava nas mãos e nos pés feita malabarista no escuro em frente a uma parede com fotografias de gente muito velha a preto e branco. Jazem aqui flores e nomes e cães iguais aos que há agora mas a cinzento e há tanto tempo mortos. Quantos cães tem uma vida?
Há uma voz que ressoa por entre os ramos. Anunciam golos de tarde desportiva, emissões de Portimão a Coimbra, vão para Braga, voltam a Lisboa, dirigem-se a Leiria, ficam em Chaves. Rudez Thiomir marca golo. E os cestos de verga abanam no gooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo de Rudez, golo do Chaves, lance que se iniciou na intermediária, a bola rodou sobre um adversário, avançou pelo miolo, chegou à linha, foi cruzada, um impasse, o mundo todo parado observando o croata, a indecisão, quase remate, remate, bola nas redes. Alguém vem e pergunta: foi golo do Benfica?
A minha camisola tem um "1" milimetricamente na diagonal - não se vê a um metro de distância, mas está lá, não foi trabalho de fábrica, houve mão de amador, aquele que ama. Na frente, há pescoço porque há decote em v, o vermelho é um vermelho mais escuro e não se vende no Media Markt, porque o Media Markt não existe e porque há coisas que o Media Markt não pode vender. Mas há um Valdo a correr nos pinheiros. E vários golos porque o golo tanto pode entrar entre árvores como entre pedras - o jogador decide, no calor do momento.
A distância entre o Valdo e o carro depende dos gritos que ecoam. Claro que os pés não sabem por que razão avançam para os pastéis de bacalhau quando há grito de golo mas o coração não tem dúvidas: vai à espera do Benfica. É agora? Foi golo do Benfica?
E aquele som contínuo, não no "g" que demora pouco, mas no "o" - quantos ós e desesperantes - e toda a gente parada, eu, o meu Pai, as rodas do carro, as folhas, o gesto das febras na grelha, o céu e as nuvens que deixam de construir imagens - tudo parado. É golo, mas de quem?
Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooolo. E antes do "l" e muito antes do "o" que o continua olhos não no rádio mas uns nos outros, eu olho o meu Pai que me olha a mim que o olho a ele. O "1" cosido nas costas a olhar o "0" cosido nas costas, pedaços de terra saltam e ficam no ar à espera. Diz Benfica, diz Benfica, diz Benfica, o coração aos pulos, diz Benfica, diz Benfica, diz Benfica, as pernas flectidas, joelhos em silêncio, quase dor muita dor, braços à espera, mãos curvas, ouves o som do público?
É indefinível, gritam todos e muitos, não sabemos quem nem por quem nem onde. Há som e ruído, imaginamos bandeiras sob o sol, cachecóis no vento, abraços, gente aos gritos, garrafões tombados. Mas é Benfica ou não? E o "oooooooooooooooooooooooooooooooooooo" continua, o homem tem fôlego, não se cala, mantém a surpresa na garganta, a bola junto a uma das rodas do carro, esquecida e adormecida, esperando o movimento. Não há movimento, só um grito que não acaba, e o golo, o golo é de quem?
Há uns sons metálicos de assobio enquanto o rádio canta. Ondas de silvos no meio dos óculos da avó que retira pratos e garfos e facas de plástico do interior de um saco. O carvão todo junto, negro, colante, uma imagem de um sol sobre a estrada de terra e uma menina que corre, indiferente ao golo, pelos cogumelos e musgo. De quem é o golo? O vestido às rosinhas não sabe, prefere dançar oblíquo sem rota nem bandeira. O golo, que é de alguém, não chama aquela corrida atrás de uma borboleta que faz desenhos no ar e depois desaparece.
... doooooooooooooooooooooooo Beeeeenfiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiica e os meus olhos abraçam os ombros do meu Pai e depois continuam para o espaço atrás dele com os olhos dele para o espaço atrás de mim e os olhos em chama, ombros em chama, a bola é pontapeada contra uma pedra grande que faz ricochete, sobe no ar que o Valdo recebe, com aquele pé de veludo, tenso o tempo suficiente para haver contacto e logo mole, macio, para ela ficar ali aninhada. Os Domingos sabiam tanto a Benfica.
16 comentários:
Posso não gostar de algumas ideias tuas, mas adoro quando leio estes teus pedaços de poesia em prosa encarnada.
citando-te
"estou bebabdo e tenho que escrever isto":
fdx. finalmente tinha ganho coragem para vir aqui bater-te e pôr-te no teu lugar e tu amandas-me cuma posta destas?????
fdx desarmaste-me crl
que coisa tão linda...
É ASSIM QUE A GENTE PRECISA DE TI!!!
Grande abraço Ricardo!
E VIVA O BENFICA!!!!
SEMPRE!!!!!
Com esse "amor a camisola10" podias ser o "Valdo dos teclados",o"Pablito das letras" ...
OH "Maradona das palavras".
Por este glorioso comunicado de amor ao Benfica, eu pago os refrigerantes!!!
Bebes coca-cola ??? ...tem que ser com limão e gelo por causa do tempo.
Porra meu que verdade maravilhosa que canção da alegria perfeita... eu sentado de bruços no meu quarto a fazer relatos, nos meus jogos o Benfica vencia sempre por "15-0"... era brutal vencíamos com essa paixão... era vida verdadeira (os adversários eram o Montijo, o Barreirense, o Lusitano de Évora, o Belenenses era um colosso)... eu mereço esses Domingos de volta e tu e todos os outros... nós merecemos... uma pequenita lágrima aflora no canto interno do olho esquerdo... sou feliz aqui e agora, tanto como tu... estou grato!
É por isso e por isto que eu sou Benfica, mesmo que os meus irmãos decidam coisas que me são estranhas - falo destas politiquices que estão a fazer mal ao nosso Benfica, mas até aí acredito que somos Um e que vamos conseguir!
Bom dia Ricardo!
Grande...grande texto!
Aquele abraço, meu amigo!
Pedro
: )
O Benfica devia jogar sempre aos Domingos à Tarde. Quando as famílias se juntam para os piqueniques, o Sol está quente e bem lá no alto mesmo a querer puxar-nos os braços para uma peladinha!
Que recordações que me trouxeste à memória, não com o Valdo que sou um pouco mais novo mas....o sentimento está todo lá!
Grande
Obrigado
Ricardo,
Infelizmente o futebol e o cinema trocaram de papéis. O cinema entregou as sessões tardias ao futebol e este em troca deu as matinées. Para o cinema, tanto faz a que horas é que se passam as peliculas... está-se fechado dentro de salas escuras a tresandar a cheiro de pipocas, portanto com luz solar ou com luz do luar, a coisa faz-se. O futebol é que sofreu as consequências de ser uma actividade de exterior... a principal foi a multiplicação dos jogadores, que à luz solar apenas produzem 1 sombra e debaixo dos holofotes altaneiros fabricam 4 similares no chão.
No meio desta relação cinema/futebol, falar de Valdo é referir o principal elo de ligação entre os 2 mundos. Talvez nunca no SLB tenha havido um jogador que olhasse a bola parada como James Bond olha as "bondettes", colocasse uma bola a 60 metros de distância com a mesma precisão com que John Wayne cravava uma chumbada numa moeda de 1 cêntimo ou inebriasse o 3º Anel como uma cavalar injecção no braço de um Renton perdido num sotão pérfido de Edimburgo. Valdo foi isto e muito mais, até porque casou com uma portuguesa e tornou-se numa espécie de Butch de Pulp Fiction, com a vantagem de saber que a sua esposa é mesmo portuguesa e não francesa.
A passagem de Valdo pelo SLB só veio confirmar o erro que foi a passagem do futebol para o horario nocturno... sob a luz dos holofotes já apareceram mais de 4 tentativas de imitação do 10 e todos eles foram pequenas sombras desfocadas do que ele foi. Só o regresso às matinees trará ao SLB a sombra perfeita dele.
Abraço
Grande texto...e era tanto assim antigamente!!!!
Abraço
Daniel
Muito bom... Parabéns...
É da melhores lembranças que tenho... O Benfica na rádio, o ídolo Valdo (seja das peladinhas em grupo ou sozinho); os piqueniques em família domingos à tarde, a azafama dos primos na brincadeira (cheios de terra e arranhados pelos arbustos) a jogar à bola entre o carro que relata o jogo, os mais velhos a jogarem à sueca deitados na manta (numa destas: http://pictures.todocoleccion.net/fot/d77/2788032.jpg), o garrafão de vinho, a caruma, os salgados, a limonada da tia que era melhor que todas as outras... Belos tempos, belas recordações... Recordações à Benfica, sem dúvida alguma ;)
Obrigado por reavivares estas memórias ;)
Abraço
Sai uma imperial pró Ricardo:)... é a penúltima... é sempre a penúltima, até haver Sport Lisboa e Benfica no Tempo.
Ricardo, que grande texto! Lembro-me de timensos momentos destes!!!! Um deles levou-me quase ao desespero. O Benfica jogava na Póvoa de Varzim (ou Faro?), estava 0-0 e na rádio já faziam a ronda final... quando oiço Goooooooooooooooooooooooooooooooooooo (mas aque oooooo nunca mais acabava...) até que ficamos sem emissão! Foram 10 segundos tão longos... mas o rádio lá volta a sintonizar e oiço Gomes. "Pronto, já não ganhamos", pensei. Mas logo depois oiço, "Ricardo Gomes elevou-se ao terceiro andar..." e só aí pudemos festejar! Um abraço, MT.
Comovi-me. Dias felizes
O meu número era o 7
És escritor
dizermos aos nossos netos que vimos jogar messi,ronaldos,zidane,etc. é um previlégio...mas quando eles me perguntarem qual o jogador que mais gostei de ver jogar, os meus olhos só brilham por 2: valdo e rui costa!
Ricardo, sem nunca lá terem estado acho que ambos pisaram o pelado do velhinho "barro vermelho" :).abrç
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