segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Voo de vida

O que nunca foi dito, o que ficou por dizer, o que pensámos e calámos. Tivemos ideias, sonhos, tivemos pensamentos, raivas, mágoas, alegrias. Admirámos sem voz, sofremos mudos, deixámos para depois. Há um benfiquismo que vive sob a primeira camada do que é óbvio. Ir ao estádio, discutir o treinador, beber uns copos antes do jogo, queixarmo-nos do árbitro, da vida, daquele adepto que não pára de insultar os nossos jogadores. Há um benfiquismo que caminha dentro de nós que não é nada disto, é mais profundo e intenso, é mais Benfica. 

Ontem soube da morte de uma menina de 30 anos. Uma menina que vi crescer enquanto eu crescia, vivendo na mesma cidade que eu, estudando no mesmo liceu que eu. Falámos pouco, quase nada. Umas palavras no meio do mundo, circunstâncias de encontros a meio-caminho, pouco mais do que isso. Morreu atirada do ar, de um pára-quedas que se enrolou e se fez gravidade. Os sonhos daquela menina todos descendo à velocidade de um corpo sem chão. Quantas vidas tiveste, menina? 

Li no jornal: «pára-quedista experiente, mais de 70 voos» e fiquei a pensar se 70 voos não tinham sido os voos que nunca teremos na vida. 70 vezes em que aquela menina se atirou, cheia de coragem e magia, do alto do alto do ar. 70 voos de vezes em que apostou na vida sobre o acaso ou acidente. 70 saltos sobre a morte, 70 céus, 70 luas, 70 mundos. O que fica por dizer no pensamento de quem voa. 

Lembrei-me do meu Pai. Voando sobre o Estádio da Luz, voando sobre mim, dia a dia, vida a vida, salto a salto. Sento-me sempre quando o jogo já está quase a começar, para que a águia faça o seu voo sobre todos os outros benfiquistas e eu veja a outra águia, só eu vendo a outra águia, rodopiando por cima de mim e dizendo: «vamos ganhar». A bola começa a rolar, há um uivo profundo das bancadas para o relvado e se alguém me olhasse ver-me-ia mirando e sorrindo para o céu, batendo palmas no coração à minha águia que me acompanha. Quantos sonhos, Pai, deixei por dizer? Quantos deixaste por ensinar?

Não dizemos nem ensinamos. Vivemos cheios de certezas e medos e dúvidas e ameaças; coisas que esquecemos de partilhar por pudor ou vergonha ou hesitações ou esquecimento. Vivem no céu glorioso dos sonhos aqueles que, por acidente ou angústia, tristeza ou vontade, decidiram voar sobre nós próprios, olhando-nos de cima, voando-nos de cima, pairando-nos. Ouvimos o seu granítico grito, mudo de sons e ruidoso de afectos. Saltam 70 vezes sobre nós. Noites em que o grito mudo se solta por entre os cabelos do sonho e nos chicoteia acordando-nos. Somos a vida ou o que fica por entre os interstícios do sono?

Acolhe essa menina, Pai. Dá-lhe chá e pergunta-lhe pela vida. No próximo jogo do Benfica, leva-a às tuas cavalitas para ela voltar a voar. Eu prometo chegar quando a bola já estiver em movimento e olhar-vos quando ninguém estiver a ver, orgulhoso dos céus e voos que vocês têm e nós não. 

6 comentários:

Rusty Ryan disse...

Li a noticia hoje de tarde. Uma noticia triste. Pelo que li agora aqui: os meus sentimentos. Acho que é o apropriado.

Importamo-nos e "arreliamo-nos" com pequeníssimas coisas, algumas sem importância qualquer. Depois vemos situações e pensamos naquilo que andamos aqui a fazer.

Fica bem.

j brito disse...

Parabéns, muito bem escrito e com sentimento profundo.. obrigado pela partilha deste belo texto.

VC disse...

Excelente Ricardo. Parabéns.

luis disse...

"pau e bola" tu és Grande!!
... estava a reflectir ontem um post aqui deste espaço quando li online esta trágica noticia. Dói...imaginar.

Viva a vida, respeitando a nossa curta passagem no caminho para a nossa única certeza.

Antonio disse...

Obrigado por mais uma bela prosa

Anónimo disse...

Caro Ricardo,

foste criado na zona de Tomar/Castelo do Bode?

Descobri hoje que um primo meu tambem conhecia essa rapariga.

Um abraço e excelente texto

Rui